Como a ciência sustentou a ideia de inferioridade biológica da mulher

O sexismo no estudo da reprodução humana ao longo da história

FONTEFolha de São São Paulo, por Rossana Soletti
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

Entender como o ser humano se desenvolve no ventre materno é uma das questões que mais intrigou a humanidade. Se hoje, com muito conhecimento e tecnologia, ainda não conhecemos todos os processos do desenvolvimento gestacional, essa questão era extremamente difícil de ser respondida na antiguidade. A atuação da ciência eurocentrada, nas mãos de homens brancos ao longo dos séculos passados, foi fundamental para firmar o estereótipo da inferioridade biológica da mulher e sua participação na sociedade como produtora e criadora de filhos.

Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), filósofo grego e estudioso de diversas áreas, dentre elas a embriologia, considerava as mulheres “homens defeituosos” cujo desenvolvimento no ventre materno havia sido encerrado precocemente. Aos fetos femininos faltaria o calor necessário para transformá-los em fetos masculinos. Quanto ao papel da mulher na reprodução, ele sustentava que, se no sangue menstrual estava a causa material para a formação do embrião, era no sêmen do homem que residia a força divina, animada e racional que daria origem à vida. A menstruação era um sêmen impuro, ao qual faltava o princípio da alma.

Para Galeno (129-217), importante médico que viveu em Roma e cujos estudos prevaleceram nas concepções ocidentais por diversos séculos, a temperatura mais alta dos homens também explicaria sua superioridade biológica. O calor, deficiente nas mulheres, seria responsável pela deformação de seus órgãos reprodutores externos e internos. Os “testículos femininos” (os ovários), pequenos e imperfeitos, dariam origem a um sêmen frio, incapaz de gerar um animal.

A ideia de inferioridade biológica da mulher também esteve presente durante os séculos 17 e 18, período intelectual fértil para a história natural. Com a construção dos primeiros microscópios, em 1677 o cientista holandês Antonie van Leeuwenhoek pôde observar os espermatozoides pela primeira vez. A movimentação deles serviu como prova de vida, presumindo a existência de uma estrutura complexa dotada de alma. Ganhava força a corrente do preformismo ou animalculismo, com a ideia de que os seres já estavam completamente formados e miniaturizados dentro dos gametas. O desenho de Nicolaas Hartsoeker, publicado em seu Essai de Dioptrique [Ensaio de dióptrica] em 1694, é a mais típica ilustração do preformismo, mostrando um ser humano curvado em posição fetal dentro da cabeça de um espermatozoide.

Mesmo depois de décadas de estudos e da demonstração de que espermatozoide e óvulo eram necessários para formar um embrião, perdurou a ideia de que o óvulo seria uma espécie de “célula passiva” à espera da entrada do mais forte e apto dos espermatozoides. Na verdade, o processo de fecundação é muito mais complexo, tendo o óvulo um papel primordial na atração do espermatozoide e no controle de sua entrada.

Na época do Iluminismo ainda vigoravam esquemas sobre a evolução dos seres vivos que mostravam as mulheres como formas embrionárias ou juvenis dos homens brancos adultos. A anatomia e a fisiologia feminina eram usadas como justificativa para associar as mulheres à esfera privada do cuidado doméstico e da reprodução, enquanto os homens desfrutavam da cultura, da política e também do fazer científico. Mesmo após muitos avanços, nos séculos 19 e 20 os médicos acreditavam que mulheres menstruadas deveriam evitar esforços mentais, pois o pensamento iria drenar as energias e desviá-las do sistema reprodutivo, causando enfraquecimento geral e podendo levar à infertilidade.

O sexismo produzido pelos homens e sustentado pela ciência durante muitos séculos ainda reverbera atualmente. Embora há mais de 50 anos saibamos que um embrião humano típico é formado por igual número de cromossomos maternos e paternos, a sobrecarga de responsabilidades na reprodução ainda recai sobre as mulheres. Por exemplo, é comum que elas façam consultas médicas e exames de saúde antes de tentar engravidar, mas raramente aconselham-se aos homens cuidados específicos pré-concepcionais.

A ciência demonstra que uma proporção semelhante de homens e mulheres pode apresentar infertilidade, e há inúmeros tratamentos e artigos científicos voltados à infertilidade masculina. No imaginário social, porém, a incapacidade de gerar filhos é atribuída sobretudo às mulheres. A ciência que colaborou para restringir o papel da mulher na sociedade precisa agora ajudar a reverter esse fato, além de divulgar que os cuidados para a reprodução são responsabilidade de ambos os sexos.

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Rossana Soletti é professora de embriologia e história da ciência na UFRGS.

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