Como Geledés combate a discriminação racial na arena internacional

Entre as iniciativas da organização está a complexa e árdua tarefa de inserir raça e gênero nos documentos das Nações Unidas

Geledés na Onu - Foto: Natália Carneiro

As Nações Unidas estabeleceram o dia 21 de março como o Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial como uma data em memória ao Massacre de Shaperville, em 1960, na África do Sul, que matou 69 pessoas e deixou mais de 180 feridos. O protesto pacífico de mais de 20 mil pessoas aconteceu durante o regime do apartheid e era contra a Lei do Passe que obrigava negros a portar uma identificação para poder circular. Os manifestantes morreram com tiros à queima-roupa.

Seis décadas após a tragédia, o combate global à discriminação racial segue em curso e ele se dá de inúmeras formas, inclusive nas mais altas instâncias da ONU. Geledés – Instituto da Mulher Negra, uma organização fundada e liderada por mulheres negras, vem se destacando no protagonismo das sociedades civis afrodescendentes nos mais altos espaços de discussão e formulação de políticas públicas voltadas à emancipação de grupos marginalizados, em especial as mulheres negras.

Desde 2022, Geledés passou a integrar o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), tornando-se um forte representante da sociedade civil no sistema ONU. Essa conquista permitiu que a organização ampliasse sua influência na formulação de tratados e declarações e na promoção de direitos humanos dentro das Nações Unidas, especialmente para mulheres e meninas negras.

Ao ocupar esse espaço estratégico, Geledés tem impulsionado o Estado brasileiro e demais países-membros a assumirem compromissos reais com a igualdade racial e de gênero. Além de participar diretamente dos fóruns das Nações Unidas, a organização tem realizado eventos paralelos, aprofundando as discussões ao destacar a interseccionalidade de raça e gênero em todas as temáticas.

A ONU é um complexo universo, que não opera de maneira monolítica, sendo que cada fórum apresenta suas especificidades próprias, linguagens diferenciadas, lideranças distintas e agendas particulares. Portanto, cada inserção da palavra “afrodescendente” em um documento realizada por Geledés representa uma vitória singular, porque significa uma nova exigência a ser feita ao Brasil e aos demais Estados membros na consecução de suas políticas internas.

Neste sentido, a organização vem avançando devido à sua habilidade diplomática e compreensão profunda dos mecanismos institucionais da ONU, consolidando sua atuação em fóruns como por exemplo o Conselho de Direitos Humanos, a Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW), o Comitê CEDAW que trata da discriminação contra as mulheres, o Fórum Político de Alto Nível Sobre Desenvolvimento Sustentável (HLPF), a Cúpula do Futuro (SotF), a Conferência de Financiamento para o Desenvolvimento, o Grupo de Trabalho de Especialistas em Afrodescendentes, e as Conferências das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP), dentre outros espaços.

Um dos marcos mais expressivos dessa trajetória foi a inclusão de um parágrafo específico sobre mulheres e meninas afrodescendentes no documento final da 68ª Sessão da CSW, em março de 2024, fruto de articulação entre Geledés, Casa Sueli Carneiro e Criola. O texto reforça o protagonismo das mulheres afrodescendentes e sua capacidade de agir na construção de sociedades prósperas e livres de discriminações.

Na esfera dos direitos humanos, Geledés conquistou a inclusão de dez propostas no rascunho da Declaração de Direitos da População Afrodescendente durante a 23ª sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental sobre a Declaração de Durban, que ocorreu em Genebra, em janeiro deste ano. Entre os temas abordados estavam justiça reparatória, racismo ambiental, educação em direitos humanos e participação da juventude afrodescendente no sistema de justiça.

A atuação de Geledés se destacou também em 2023, 2024 e agora neste ano, como uma organização de mulheres negras do Brasil que participa ativamente de sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU, apresentando demandas por justiça reparatória e políticas de promoção da igualdade racial com financiamento público.

Outro ponto alto foi a entrega, em abril de 2024, do Relatório Sombra à 76ª Sessão da Convenção contra a Tortura (CAT), expondo casos emblemáticos de violência contra a população negra, como o assassinato de Luana Barbosa. Por meio deste relatório, o instituto solicitou ao comitê da ONU que demandasse do Estado brasileiro o efetivo cumprimento do CAT como um dispositivo constitucional, banindo por vez o projeto de extermínio da população negra no Brasil.

Ainda com recorte racial, o instituto também apresentou argumentos ao Comitê de Direitos Humanos da ONU durante a sabatina do Brasil no cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Em fevereiro deste ano, Geledés obteve uma importante vitória com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de considerar o “Estado brasileiro responsável internacionalmente pela falta de devida diligência reforçada na investigação de violação do direito à igualdade e à não discriminação por razão de raça e cor sofrida por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira Gomes”. Após quase três décadas, o instituto celebrou esse processo histórico por ser a primeira condenação do Brasil pela Corte IDH.

Geledés vem também se pronunciando na agenda climática e de desenvolvimento sustentável. Em parceria com outras instituições, tem apoiado a implementação do ODS 18 – Igualdade Étnico-Racial –, anunciado pelo Brasil em 2023, defendendo a desagregação de dados por raça e gênero para garantir políticas inclusivas. A organização também pleiteia um novo grupo de stakeholders afrodescendentes na ONU, fortalecendo a agenda antirracista global.

Na COP16, realizada em outubro passado na Colômbia, Geledés atuou fortemente pela inclusão da população afrodescendente no documento final da Convenção sobre Diversidade Biológica, reconhecendo sua contribuição à conservação ambiental. Esse feito representa um avanço simbólico e político importante no reconhecimento das práticas sustentáveis das comunidades negras.

Geledés também atuou com protagonismo no G20 Social, lançando, ao lado de outras organizações, o documento “Empoderamento Econômico da População Afrodescendente e o Papel dos Bancos de Desenvolvimento”. O texto apresenta 40 recomendações que propõem, entre outras medidas, crédito afirmativo, políticas de microcrédito e promoção de diversidade institucional.

Por fim, durante o Fórum Inter-Religioso do G20, o instituto reforçou a importância das religiosidades de matriz africana e o papel das mulheres negras na construção da paz e da resiliência comunitária.

A atuação de Geledés em arenas nacionais e internacionais vem reforçar o compromisso inabalável com a justiça racial, de gênero e climática, demonstrando que nenhuma transformação social será plena se forem deixadas para trás as vozes e as vivências da população afrodescendente.

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