Como Machado de Assis está sendo redescoberto pelo mundo

FONTETAB, por Edison Veiga
Machado de Assis (Imagem: Campanha #MachadodeAssisReal/Faculdade Zumbis dos Palmares)

Na carta ao leitor que abre “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o narrador defunto arrisca que, quando muito, a obra teria cinco leitores. Enganou-se. Publicado pela primeira vez há quase 140 anos, o romance de Machado de Assis (1839-1908) segue conquistando leitores — dos que encararam como obrigação pré-vestibular a críticos literários de todo o mundo.

No início de junho, a revista New Yorker publicou um ensaio chamando o clássico de um dos livros mais inteligentes já escritos. “É uma obra-prima brilhante e uma leitura de absoluta alegria, mas, sem nenhuma boa razão, quase nenhum falante de inglês no século 21 o leu (eu o li apenas recentemente, em 2019)”, escreve Dave Eggers, que assina o texto.

Uma versão do mesmo texto faz as vezes de introdução de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, a novíssima tradução lançada pela Penguin Classics no mercado norte-americano com retumbante sucesso — esgotou-se no primeiro dia de venda.

Para o sociólogo Pedro Meira Monteiro, doutor e professor em Teoria e História Literária na Universidade de Princeton (EUA), a redescoberta internacional de Machado tem seus motivos. “Essas novas edições, com traduções esmeradas, vão despertando um interesse que não existia antes”, pontua ele. “No caso da edição da Penguin Classics, certamente ajudou que o prefácio seja de Dave Eggers, que é um escritor conhecido aqui.”

A tradutora Flora Thomson-DeVeaux e seus dicionários, mesa de trabalho e o “Memórias Póstumas” traduzido por ela
Imagem: Paula Scarpin/Divulgação

A tradução é resultado de quase cinco anos de trabalho da escritora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux. Norte-americana de Charlottesville, na Virginia (EUA), ela começou a estudar o Brasil ainda na graduação, em Princeton. No primeiro ano, foi chamada para traduzir a biografia de Carmen Miranda (1909-1955) de Ruy Castro. O projeto não foi adiante, mas ela acabou fissurada na música brasileira dos anos 1930 e na prática da tradução.

“A partir do segundo ano já sabia que queria fazer a minha formação em ‘Spanish and Portuguese Language and Cultures’, e foi nesse contexto que resolvi pegar as ‘Memórias Póstumas'”, recorda. “Só conheci o Brasil quando vim fazer intercâmbio na PUC-Rio em 2011, mas minha paixão se concretizou e hoje moro no Rio.” O trabalho de tradução foi parte de seu doutorado na Universidade Brown. “É o sonho de qualquer tradutor literário conseguir passar anos a fio debruçado numa obra-prima”, afirma.

O professor Roberto Mulinacci, da Universidade de Bolonha, na Itália, diz ao TAB que não é fácil entender quais são as razões que subitamente decretam o sucesso de um autor. “Talvez decorra de uma estratégia de marketing hábil, ligada à importância da editora, que tem força e meios para promover o produto e torná-lo visível”, comenta ele. Mulinacci recupera o prefácio de escritora Susan Sontag (1933-2004) na tradução de “Memórias Póstumas” publicada em 1991, na Itália, para dizer que “está contente, porque finalmente Machado ‘ocupa o lugar que merece’ também nos Estados Unidos”.

Dor e delícia da tradução

Um conhecido provérbio italiano sintetiza as agruras de verter para outra língua uma obra literária: “traduttore, traditore”, ou seja, “o tradutor é um traidor”. No ofício de transpor um livro de um idioma para outro, a escolha das palavras, da sintaxe e do tom é fundamental. Em se tratando de um autor como Machado, de estilo genial e inconfundível, mas, ao mesmo tempo, ambientado no século 19, essa tarefa pode ser árdua.

Thomson-DeVeaux passou a colecionar dicionários, sobretudo os antigos, contemporâneos à obra que traduzia. Quantos? “Nem sei dizer, porque além dos dicionários físicos consultei textos digitalizados para tirar dúvidas. Aqui na minha mesa tem uns quinze”, conta.

Ela conta que encarou o livro frase por frase, “como se lesse pela primeira vez”. “Foi aí que esbarrei na palavra ‘calabouço’ e me espantei com a história das prisões escravas no Rio de Janeiro. Seria interessante para os leitores lusófonos conhecerem o romance em inglês, ou em qualquer outra língua, para assim re-conhecê-lo.” A tradução faz parte de um projeto maior de mapeamento e análise da trajetória do romance em inglês.

Professor Mulinacci aponta que os textos machadianos são, “em geral, bastante normativos, não apresentam grandes obstáculos do ponto de vista linguístico”. Para ele, a maior dificuldade reside na carga cultural. Falhas de tradução, portanto, podem impedir “o leitor de compreender completamente a realidade brasileira da época”.

Diretora de projetos especiais da editora Panda Books, Tatiana Fullas acredita que a principal dificuldade na hora de traduzir Machado é o vocabulário. Ela lembra que esse ponto é um obstáculo inclusive na hora de cativar leitores brasileiros jovens — na maioria das vezes, “obrigados” a ler a obra do autor por exigências escolares. “Na nossa edição [de ‘Memórias Póstumas’], decidimos explicar muitas palavras e termos que ele usa”, comenta ela, citando como exemplos disso “tanoeiro” (aquele que faz ou conserta barris) e “pataca” (moeda, dinheiro).

Machado internacional

De acordo com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), há 99 traduções estrangeiras para obras do Bruxo do Cosme Velho. Mas, certamente, há uma subnotificação.

O site oficial de Machado de Assis mantido pela Academia Brasileira de Letras também traz uma lista, onde há exemplos curiosos, como “Dom Casmurro” em estoniano, em romeno e em tcheco, “Quincas Borba” em árabe e “Memórias Póstumas” em dinamarquês.

Ainda em vida, Machado de Assis empenhou-se em internacionalizar sua obra. Seu editor era o livreiro francês radicado no Rio Baptiste-Louis Garnier (1823-1893). Ele editava o material e enviava para impressão na França. Há registros de troca de cartas com seu sucessor, F. H. Garnier, em 1899, em que o escritor pedia para que um de seus livros fosse traduzido para o alemão — pedido negado. “Não tereis nada a ganhar ao ser traduzido para o alemão”, escreveu Garnier.

Machado empenhou-se em fazer seus livros circularem em Portugal. Em vida, o escritor teve apenas duas traduções, ambas para o espanhol: “Memórias Póstumas” saiu no Uruguai em 1902; “Esaú e Jacó” chegou às livrarias argentinas em 1905.

Só a partir dos anos 1940 passou a haver esforço institucional para internacionalizar a literatura brasileira, com traduções encomendadas pelo Instituto Nacional do Livro — caso de “Memórias Póstumas”, em inglês, em versão feita por um pastor protestante britânico inexperiente na arte de traduzir, Edward Percy Ellis (1879-1963). O livro acabou publicado em 1955.

Para Carrenho, programas de apoio são fundamentais para internacionalizar a literatura de um país. “Bancam não só a tradução, mas às vezes até viagens de escritores. Isto é fundamental. Qualquer país que leve sua literatura a sério deve manter um programa de subsídio assim. Os programas dos países nórdicos são particularmente fantásticos.”

A tradutora eslovena Mojca Medvedšek Imagem: Arquivo pessoal

A Fundação Biblioteca Nacional mantém um programa de apoio desde 1991, reformulado há nove anos. Esse tipo de iniciativa ajuda inclusive que obras importantes cheguem a mercados pequenos, em línguas pouco conhecidas.

Quando assumiu seu posto na Eslovênia, em 2017, o embaixador do Brasil Renato Mosca de Souza soube que estava em curso a tradução de “Memórias Póstumas”, lançada pela editora eslovena LUD Serpa sob o título “Posmrtni Spomini Brása Cubasa”. E que havia um plano de seguir com as versões da tríade machadiana (“Quincas Borba” e “Dom Casmurro”). “Quando o projeto entrou no segundo livro, apoiamos a solicitação de recursos da Biblioteca Nacional, que acabou sendo exitoso”, conta o embaixador ao TAB.

“Os eslovenos têm fascínio pela leitura dos clássicos e pela literatura de outros países. Livro aqui é coisa séria, idolatria mesmo.” No caso da língua portuguesa, uma equipe de alto nível de professoras-tradutoras ensina a língua e difunde a cultura lusófona. Saramago está amplamente traduzido, Paulo Coelho, também.

Estudiosa da língua portuguesa, a tradutora Mojca Medvedsek considera um golpe de sorte ter conseguido emplacar o projeto. Conforme relata, ela leu o livro pela primeira vez por indicação de amigos portugueses “que recomendaram Machado de Assis como um autor incrível e fora do comum”.

Antes da tradução de Mojca, uma seleção de 33 contos machadianos chegou ao mercado esloveno: “Duseslovec in Druge Zgodbe” (“O Alienista e Outras Histórias”), vertida por Katja Zakrajsek e lançada em 2012. “Escolhi os contos a partir de vários livros: ‘Papéis Avulsos’, ‘Várias Histórias’, ‘Páginas Recolhidas’ e ‘Relíquias de Casa Velha'”. Ela conta que quando propôs o projeto à editora Sanje, “Machado de Assis era completamente desconhecido, os editores sequer tinham ouvido falar dele”.

Não foram poucas as vezes em que se acreditou numa fama global para Machado de Assis, similar à do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Isso aconteceu nos anos 1950, quando saíram duas versões anglófonas de “Memórias Póstumas”: uma de William L Grossman, e a já citada de Percy Ellis. Em dezembro de 1951, o crítico literário Eugênio Gomes escreveu no jornal “Correio da Manhã” que Machado de Assis “já não pertence apenas à literatura brasileira”, e que “suas obras passaram a interessar a outras culturas, sucedendo-se as traduções em várias línguas”.

Mas o boom não ocorreu. Nas décadas de 1980 e 1990, novas traduções chegaram ao mercado. Nenhuma encantou.

“Sempre fico muito surpreendida quando vejo que na Europa Machado de Assis não tem a mesma posição de destaque como outras vacas sagradas da literatura latino-americana”, comenta a tradutora Medvedsek.

O crítico literário norte-americano Michael Wood, professor em Princeton, acredita que os anos 1950, quando o escritor começou a ser traduzido para o inglês, era cedo demais para o brasileiro. “Machado foi ‘redescoberto’ na década de 1980 e acreditávamos que tínhamos um novo autor importante no panteão internacional. Mas ele desapareceu novamente”, relata ele, ao TAB.

“Então fica a pergunta: esse reavivamento atual durará? Por que leitores, editores e jornalistas continuam perdendo-o toda vez que o encontram?”, provoca Wood. “Arrisco uma explicação: a grandeza de Machado tem a ver com a delicada ironia de seus escritos. Ele é infinitamente engraçado, mas não é um engraçado óbvio. Talvez os falantes de inglês não estejam prontos para esse não óbvio.”

Pedro Meira Monteiro é mais otimista com o alcance da atual tradução. “O leitor internacional vai provavelmente entender que a falta de caráter de Brás Cubas tem a ver com sua posição privilegiada numa sociedade escravista”, comenta ele. “No fim das contas, acho que é suficiente mergulhar numa boa tradução do livro para entender que Brás é ao mesmo tempo divertido e odioso. A sua leveza esconde as práticas racistas, a arrogância e a ignorância que grassavam e infelizmente ainda grassam na sociedade brasileira.”

“O Brasil anda muito malvisto no cenário internacional, por conta de seu desgoverno e da constante ameaça à democracia”, completa o professor. “Mas tenho alguma fé, talvez ingênua, de que uma edição cuidadosa como a de Penguin Classics ajude a lembrar que o Brasil tem jeito.”

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