Como o racismo pode levar ao adoecimento mental

FONTEPor Tayanne Silva* e Maria Carolina Brito*, do Correio Braziliense
Guilherme Alves Costa Silva iniciou a terapia durante a quarentena: lidando com o racismo sem adoecer - (crédito: Arquivo pessoal)

O racismo pode afetar a população negra de diversas formas e em diferentes dimensões. “Na sua forma de existir, de serem potências, de se enxergar enquanto bonitos, na sua forma de enfrentar os adoecimentos, o racismo atinge a nossa vivência, em qualquer parte do cotidiano”, acredita o psicólogo especialista em direitos humanos Matheus Asmassallan.

O profissional ressalta que falar de racismo é levar em consideração a situação da população indígena no país, que sofre com apagamentos históricos. “Ainda hoje, as pessoas indígenas lutam pelo mapeamento de sua terra. Os quilombolas labutam para ter direito ao seu território. O racismo chega de diversas formas, inclusive nessa desterritorialização, e não garante o direito de estabilidade de vida.”

Matheus lembra que diferentes realidades serão atingidas por essas violências de formas diferentes. “Se eu sou um jovem professor universitário, psicólogo, dentro do meu condomínio fechado, vivencio atravessamentos do racismo de uma forma totalmente diferente de uma pessoa quilombola, de uma pessoa na periferia”, compara.

Para ele, essas violências impedem as pessoas racializadas de existirem de forma plena. “Tudo o que houver no aspecto político, social e econômico no Brasil será atravessado pelo racismo, que impedirá ou impossibilitará que as pessoas negras vivam esse bem-estar com plenitude, e permitirá que as pessoas brancas pertençam a um grupo social privilegiado, que goza esses direitos e até as sobras deles.”

O ambiente acadêmico, para as pessoas negras, desde cedo é permeado de violências, que vão desde ao não reconhecimento nos livros didáticos até a ausência de professores, coordenadores ou diretores negros. “A gente vai se ver nos vigilantes, nas ‘tias’ merendeiras. Não que isso seja um problema, mas a gente sempre vai se perceber nos subúrbios.”

Aquilombamento

Nós, negros, não nascemos com a saúde mental prejudicada, não brotamos sem nos acharmos bonitos. Não naturalizamos os nossos lugares na pobreza, com falta de acesso à saúde, à educação e à qualidade de vida”, diz Matheus Asmassallan
(foto: Arquivo pessoal)

Para Matheus, políticas, como as cotas, e iniciativas, como os centros de convivência que existem na Universidade de Brasília (UnB), são fundamentais, mas não resolvem tudo. “Nós, negros, não nascemos com a saúde mental prejudicada, não brotamos sem nos acharmos bonitos. Não naturalizamos os nossos lugares na pobreza, com falta de acesso à saúde, à educação e à qualidade de vida. Isso é imposto pela sociedade racista e pela branquitude que nos governamentaliza, ou seja, as pessoas que estão nas estruturas de poder, nas políticas públicas, são, em sua maioria, brancas.”

O psicólogo acredita que uma das formas de fortalecer a saúde mental, em meio a um cenário de violência que mata uma pessoa negra a cada 23 minutos, é se unir. “O que eu posso dizer para o meu povo é para se fortalecer, aglomerando-se, aquilombando-se, como diria Abdias Nascimento. A partir do quilombismo, a gente precisa se fortalecer enquanto coletivo, reconhecer-se enquanto sujeitos potentes, de qualidades positivas e, claro, de humanidade e direito à vida.”

O cuidado de si
Guilherme Alves Costa Silva, estudante, 22 anos, conta que começou a fazer terapia durante o período de isolamento social. “A gente foi obrigado a conviver com sentimentos e emoções que antes não viam à tona facilmente, entre eles a intensidade da revolta e a tristeza diante das situações de racismo.” Para ele, ter alguém para debater sobre essas questões é fundamental.

Na terapia, Guilherme encontrou um lugar para cuidar da saúde. “O mais interessante dessas experiências é que sempre que eu trazia um assunto relacionado a algum caso de racismo e/ou violência policial, eu sempre acabava me reconhecendo e avaliando minhas próprias experiências, e como poderia lidar com elas sem adoecer.”

Para ele, notícias de violência contra pessoas negras, como a morte do menino Miguel, 5 anos, que caiu do 9º andar de um prédio no Recife, no dia 2 de junho, e o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, em 25 de maio, foram gatilho que o fizeram refletir sobre situações do passado, e medos diários. “Tudo isso contribuiu para eu me reconhecer em diversos aspectos, que vão desde rejeição na infância até o risco de sofrer violência policial em qualquer lugar.”

Um outro ponto que é frequentemente levantado por ele durante a terapia é sobre ter que ser duas vezes melhor. “Quando o ator de Pantera negra, Chadwick Boseman, morreu, eu e minha psicóloga entramos em uma longa conversa sobre o esforço em se destacar para além de sua cor de pele, e isso foi muito importante para avaliar como eu lidava com essa pressão de ser bem-sucedido, de ter sido rejeitado em estágios por conta da minha aparência, de querer me destacar e fazer trabalhos que não tenham somente a ver com temáticas raciais, etc.”

Homens negros

“Temos muito o que avançar na promoção da saúde mental para a população negra no Brasil”, diz Vinicius Dias Cunha
(foto: Arquivo pessoal)

O psicólogo clínico Vinicius Dias Cunha explica que a construção social do Brasil deu-se sob um grande período escravocrata, em que homens brancos tinham em mãos o poder de transformar pessoas negras em objetos de servidão. Foi durante esse período que começou a se formar a ideia de masculinidade existente hoje no contexto brasileiro.

“O homem branco mostrava seu poderio por meio dos castigos públicos, da animalização do homem negro e na sua emasculação. Práticas como o linchamento, ainda atuais, são autorizadas neste período histórico. Estamos falando de um grupo de homens que decide se outro grupo de homens será exposto publicamente, se terá comida, direito à privacidade de seus corpos e à manutenção de suas famílias.”

Esses mecanismos não desapareceram com o passar do tempo, segundo Vinicius, eles são atualizados por meio de diferentes dispositivos, que afetam de forma direta a saúde dos homens negros, bem como a de seus familiares e amigos. “Ano após ano, os índices de encarceramento e de homicídios aumentam entre a população negra e diminuem ou se mantêm estáveis entre a população branca. Inclusive, no momento atual de mortalidade pela covid-19, o homem negro aparece como maior impactado. Sair de casa e não voltar é uma realidade posta para os homens negros brasileiros.”

Aspectos individuais, como a subjetividade desse grupo, são atingidos. “O homem sensível, calmo, pensante, o pai presente com condições de dialogar tem uma construção imaginária e social direcionada ao homem branco. Ao homem negro, sobra o lugar do homem que abandona, mulherengo, bruto, irascível.”

Falta acesso aos profissionais de saúde

“Racismo reverso não existe. Fomentar uma discussão defendendo a existência de um conceito como esse é um desserviço àqueles que realmente lutam por igualdade étnico-racial no Brasil”, diz Paulo Licar Gois
(foto: Arquivo pessoal)

“As ciências da saúde mental não estão chegando às pessoas negras. Por que os meus pais torceram o nariz quando eu falei que queria fazer psicologia?”, questiona o psicólogo Matheus Asmassallan. Para ele, apesar de esses serviços estarem no Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso para as populações quilombolas e indígenas é dificultado.

O psicólogo clínico Vinicius Dias Cunha afirma que existe um movimento de alguns psicólogos negros disponibilizarem vagas em suas agendas, com valores mais acessíveis, para pessoas negras, bem como o envolvimento em ações comunitárias. “Isso acaba possibilitando que mais pessoas negras cheguem aos consultórios, mas isso ainda não é uma realidade a ser comemorada. A psicologia tem um caminhar elitista e branco, que não pisa no barro e não se especializa em uma escuta antirracista, esquecendo-se de que na viela das favelas, nos campinhos de futebol, existem pessoas produzindo subjetividades.”

Para ele, os aparelhos e as políticas públicas passam por um sucateamento, e sobra para os servidores executar ações que possibilitem a promoção de saúde mental para as populações mais pobres. “Mas isso não é o suficiente. Temos muito o que avançar na promoção da saúde mental para a população negra no Brasil”, completa.

Autoestima e educação

Para Joice Marques, uma das gestoras do Quilombo Urbano Casa Akotirene, a pessoa preta precisa resgatar a autoestima
(foto: Ana Rayssa/CB/D.A.Press)

Um ponto importante levantado por Vinicius diz respeito à terapia ser feita por um profissional negro. Ele conta que é relato comum de diversos pacientes a procura por psicólogos negros, por acreditarem que estes compreenderão melhor suas dores. “Geralmente, esses pacientes relatam desilusões com profissionais brancos quando levam acontecimentos que perpassem a temática racial. Há casos de falta de ética profissional, em que o(a) psicólogo(a) branco(a) desdenha ou desacredita na história contada pelos pacientes negros. A resolução 18/2002 do CFP estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. Ser um profissional antirracista é dever de todos profissionais da psicologia, pois racismo, além de adoecer, é crime no Brasil. Não podemos compactuar.”

A empreendedora e agente cultural Joice Marques, 34 anos, observa que o racismo é muito complexo no Brasil. “Vem de uma forma sutil, muita das vezes, o que leva a ter dificuldade de identificar se é racismo. Então, passamos a entender e perceber apenas quando vivemos situações de agressão verbal, pois é onde fica mais escancarado”, analisa.

Ela conta situações racistas que aconteceram com ela. “Quando entrei numa loja de maquiagem para comprar um batom vermelho, a dona do estabelecimento me perguntou: Você, com essa cor de pele, acha que vai ficar bonita com esse batom vermelho?” Outra vez, fui questionada por ser negra e estar com cabelo pintado de loiro!

Joice teve bastante dificuldade em lidar com racismo, principalmente, na adolescência e juventude. “A insegurança que o racismo deposita é horrível. Não precisei fazer terapia, mas acho importante, pois, o racismo é nocivo para a saúde mental”, conta ela. “É necessário um processo de resgate da confiança e da autoestima. Isso só vem por meio desse encontro com a nossa história e ancestralidade”, complementa.

A moradora de Ceilândia acredita que a educação é o caminho para obter mais conhecimento sobre o assunto. Joice é uma das gestoras do Quilombo Urbano Casa Akotirene (@casaAkotirene) — organização de mulheres pretas, localizada em Ceilândia. Segundo ela, em 2020, falar sobre racismo ainda é um incômodo para muita gente. “Mas o genocídio da população negra não causa nenhum aborrecimento para elas. Precisamos admitir que ainda estamos muito atrasados enquanto sociedade.”

Formas de racismo
Segundo o psicólogo clínico Luciano de Sá, não há um racismo, mas vários. E como lidar com eles? “Por exemplo, no racismo nas lojas de departamento, hipermercados, shoppings, bares, etc., o caminho é por via da formação educativa e sensibilização antirracista coordenadas por psicólogos negros”, exemplifica. “No racismo nas práticas acadêmicas, aconselha-se fazer o debate racial em sala de aula, cobrar das instituições que contratem professores negros e ofereçam disciplinas com a ética racial nas grades de ensino.”

Outro fator que pode piorar o racismo é a ideia de “racismo reverso”. De acordo com o psicólogo clínico e ocupacional Paulo Licar Gois, essa concepção é fruto da ignorância e do conhecimento raso sobre o assunto. “Racismo reverso não existe. O Supremo Tribunal Federal (STF) fixou tese determinando que o conceito de racismo vai além dos aspectos biológicos ou fenotípicos e deve ser compreendido em dimensão histórica e social”, explica. “Fomentar uma discussão defendendo a existência de um conceito como esse é um desserviço àqueles que realmente lutam por igualdade étnico-racial no Brasil.”

Apoio à mulher preta
O espaço tem como compromisso a manutenção da cultura negra, a representatividade e o protagonismo dessa população. A Casa desenvolve atividade de formação, inclusão gratuitas, além de campanhas de acolhimento à comunidade, como assessoria jurídica, atendimento psicológico, cestas básicas e outras demandas. Isso só é possível devido a parcerias diretas e indiretas. Desde o início do ano, vem fazendo acolhimento psicológico para pessoas negras e periféricas com a campanha Saúde mental. O atendimento é gratuito!

Como ajudar?
* A prática do racismo é crime. Caso seja uma cena, o caminho é a denúncia. Caso seja racismo em outros níveis, deve-se analisar as implicações dos fatos e agir visando a reparação de danos materiais e psicológicos.

* Converse. Falar com pessoas que tenham uma vivência semelhante pode ajudar, porém, sempre é necessário buscar ajuda profissional. No contexto clínico, profissionais de psicologia estudam os impactos e as consequências do racismo na saúde mental, são capacitados para fortalecer estratégias de enfrentamento e acolher essas pessoas. Contudo, caso não se sinta à vontade, há profissionais que estudam o assunto, como a Articulação dos Pesquisadores e Psicólogos Negros (ANPSINEP).

* Família e amigos. Eles configuram a chamada rede de apoio. São pessoas que podem dar auxílio emocional para quem foi vítima de racismo. Vale ressaltar que, em tempos de pandemia, grupos de apoio virtual e grupos específicos (que debatem sobre raça) em redes sociais são alternativas que podem ajudar.

* Na infância, a situação é ainda mais delicada, já que a criança nem sempre tem condições emocionais para pedir ajuda ou relatar que está sendo vítima de racismo. Pais e cuidadores têm o papel essencial no combate, pois, são as pessoas capazes de identificar sinais de que a criança está sendo vítima. A integração entre a família e a escola é essencial em casos que envolvam comportamentos racistas. Busque acolhê-la, ouvir a pessoa sem julgamento e compreenda o que ocorreu. Evite tentar “tirar’’ a emoção da pessoa, isso pode ser invalidante. É preciso prestar atenção para não deslegitimar o discurso da pessoa que sofre racismo, associando a posição política, escolha religiosa ou orientação sexual dela.

* Depressão e suicídio. O racismo causa sofrimento, pois, pode desencadear sentimentos de tristeza, desânimo e, na ausência de recursos para lidar com esses sentimentos, pode surgir um quadro depressivo. Às vezes, há um possível mascaramento dessa motivação ou por subnotificação no quesito raça/cor nos atendimentos, ou seja, pôr a ausência de demonstrações ou enunciados dos indivíduos. Muitos jovens e adolescentes negros apresentam comportamentos de risco que podem levar ao suicídio, mas que não são levados em consideração, até mesmo em seus ciclos sociais mais próximos. As diversas fragilizações que se abatem sobre as famílias negras também motivam comportamentos e ideações suicidas.

Fontes: psicólogo clínico e ocupacional Paulo Licar Gois e o psicólogo clínico Luciano de Sá

*Estagiárias sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

Fonte: Tayanne Silva* e Maria Carolina Brito*, do Correio Braziliense 
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