Como se faz um Ex-Negro? Birracialidade na obra de James Weldon Johnson

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Caio Arrabal Fernandez Jabbour
Caio Arrabal Fernandez Jabbour é Mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Campinas

A estruturação do racismo enquanto pilar da sociedade estadunidense durante e após a escravidão operou para, mais do que barrar, impossibilitar a população negra de qualquer identificação com a cidadania americana. Aos sujeitos miscigenados, a cidadania era possibilitada por suas performances enquanto brancos, mas isso também não aconteceu sem suas respectivas perdas e abdicações.

Foi através da reflexão dessas perdas que, em 1912, a Sherman, French & Company publicou um livro intitulado Autobiography of an Ex-Colored Man (A autobiografia de um Ex-Negro, na tradução brasileira pela Editora 8inverso), de autoria desconhecida. Embora as autobiografias fossem um gênero comum na sociedade norte-americana, o título e a ausência de autor chamaram a atenção do público leitor.

Alguns anos mais tarde, por volta de 1915, James Weldon Johnson reivindicou a autoria do livro. Afirmando não se tratar de uma autobiografia sua, mas, uma obra de ficção baseada em experiências comuns da população negra estadunidense do período. Mesmo que o livro não fosse uma autobiografia real, dialogava diretamente com o gênero literário de autobiografias negras publicadas ao longo do século XIX, o que talvez explique seu imediato sucesso entre a sociedade letrada estadunidense. Os leitores daquela época puderam conhecer os horrores do cativeiro por meio dos relatos inspiradores de Frederick Douglass, Harriet Jacobs, Harriet Tubman e Solomon Northup, por exemplo. Os textos potencializaram o discurso abolicionista que ganhava força desde a década de 1840 nos Estados Unidos da América e podem ser indícios que justifiquem o imediato sucesso de uma obra anônima com a mesma temática.Narrada em primeira pessoa, a obra apresenta um filho de uma mulher negra com um homem branco. Por ter a pele mais clara, o personagem se considerava, em grande parte da sua infância, uma pessoa branca. Esse pertencimento, contudo, é modificado pela vivência escolar, quando sua cor de pele o obriga a participar e interagir em atividades com outros negros. Daquele momento em diante, o narrador decide por experienciar a cultura afro-americana ao máximo, a tal ponto que, no desenrolar da narrativa, ele se torna um músico renomado por tocar clássicos da música erudita em versões de ragtime – estilo musical de origem negra que, atualmente, é considerado um dos pais do jazz.

Primeira página do livro publicado por James Weldon Johnson, em 1912. Fonte: Acervo pessoal do autor.

Se a história do “Ex-Negro” criara controvérsia entre os editores negros estadunidenses daquele período, esses conflitos estavam, ainda, muito distantes das histórias de horror que negros e negras continuavam a viver nos Estados Unidos, mesmo anos após a Emancipação. Durante o regime escravista, mais especificamente nas primeiras décadas do século XIX, o universo jurídico estadunidense consolidou o vínculo entre status social e raça, impossibilitando a associação entre liberdade e “ser negro”. Após a Declaração de Emancipação em 1865, a população branca passou a defender que a população negra livre e liberta era inadequada à vida em liberdade, uma vez que passaram séculos no cativeiro e, consequentemente, não poderiam arcar com os compromissos exigidos pela cidadania.

Especialmente entre os anos de 1865 e 1877, a população negra pôde acessar alguns aspectos da cidadania e participação política nos Estados Unidos, motivados por forte mobilização popular que reivindicavam a ocupação dos espaços institucionais por essas pessoas. Somado a isso, diversos respaldos legais marcaram este período, denominado pelos historiadores como Reconstrução. Porém, este tempo de conquistas políticas e cidadãs chega ao fim em 1877, quando o candidato à presidência pelo partido republicano, Rutherford Hayes, negocia com políticos influentes do sul a retirada das tropas da União dos antigos territórios confederados em troca de apoio à sua candidatura. Assim, garantiu a retomada do poder àqueles que, poucos anos antes, eram contrários ao fim da escravidão e, agora, tinham como objetivo retroagir ao máximo as conquistas da população negra na sociedade estadunidense.

As décadas seguintes foram marcadas por constantes formas de exclusão dessa população: leis que restringiam a participação política aos alfabetizados – consequentemente excluindo uma massa populacional negra que sequer tivera a oportunidade de acessar a educação formal; a fundação da Ku Klux Klan, que, na imagem dos fantasmas dos Confederados, tinha como objetivo garantir a manutenção da supremacia branca, recolocando em foco a violência física contra a população negra com acusações muitas vezes sem prova alguma além do próprio testemunho oral, perseguições e linchamentos; além da institucionalização das leis que garantiam a legalidade da segregação racial, sobretudo após 1895, com o caso de Plessy v. Ferguson.

Essas leis operavam através de uma linha tênue que garantia sua constitucionalidade frente a 14ª Emenda Constitucional. A 14ª versa sobre o direito à cidadania e igualdade a todos os nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos. As leis da segregação, então, reconheciam a diferença entre as raças, mas sem atribuir superioridade ou inferioridade de uma sobre a outra ou, conforme os termos utilizados pela Suprema Corte dos Estados Unidos, “separados, mas iguais”. Entretanto, mais importante do que definir o lugar que a população negra deveria ocupar na sociedade estadunidense, era dimensionar efetivamente quem era considerado negro nesta realidade.

Apesar da larga proibição de relacionamentos interraciais desde o período escravista (e que se perpetuaram com a instituição da segregação racial), não era incomum encontrar filhos e filhas frutos de estupros entre senhores e escravizadas ou, ainda que menos comum, relações consensuais entre pessoas brancas e negras – como é o caso da narrativa de James Weldon Johnson. A forma de solucionar esta questão, ao longo do século XX, foi o reconhecimento da Regra da Única Gota (One-drop rule). A partir dela, o indivíduo que possui um ancestral negro em sua árvore genealógica é considerado negro, independentemente da tonalidade de sua pele.

É importante destacar que isso ocorria principalmente no campo jurídico, ou seja, para a aplicação e julgamento de possíveis quebras das leis segregacionistas, pessoas negras de pele clara ou escura estavam sujeitas às mesmas condições. Todavia, na vida cotidiana, esta questão se apresentava de forma bastante complexa. Era comum que pessoas negras de pele clara se passassem por brancas como uma forma de contornar as constantes ameaças que cerceavam a vida negra. 

O passing, processo em que uma pessoa racializada forja sua imagem como uma pessoa não-racializada, é possibilitado pela renúncia de diversos elementos que envolvem todo o entendimento de mundo de um indivíduo. As pessoas negras que se passam por pessoas brancas, principalmente no contexto da segregação racial, abrem mão de suas comunidades, de suas redes de apoio e do universo cultural vivido e consumido desde seu nascimento. Em troca, visam a possibilidade de construir uma vida que possa ser menos rodeada pela violência institucionalizada contra a população negra. Elas optam, então, pela violência de renunciar à sua própria raça para garantir a manutenção de sua existência. Dessa forma, apesar das constantes tentativas de institucionalização de um sistema racial dicotômico, que não apenas classifica como segrega a população do país, a vida cotidiana permite diversos questionamentos e afrontas a este sistema.

É com o intuito de narrar a vida de uma destas pessoas que, em 1912, James Weldon Johnson publica o livro Autobiography of an Ex-Colored Man (ou Autobiografia de um Ex-Negro, na tradução brasileira). A despeito de sua trajetória e todos os conflitos internos que o narrador enfrenta por conta de sua vida de constante transição entre o mundo branco e o negro, o personagem, já adulto, presenciou uma cena de linchamento, motivado por uma mulher branca que acusou um homem negro de roubo. Mais uma vez, Johnson usa de sua ficção para dramatizar uma experiência comum aos negros e negras do período: os riscos de assumir e reivindicar o “ser negro” como identidade.

Assim, a ideia de um pertencimento racial para pessoas negras na sociedade estadunidense se consolida em aspectos que ultrapassam o caráter fenotípico, ou seja, não é baseado apenas na aparência dos indivíduos. Como o espectro racial estadunidense tentou operar em bases dicotômicas – quem não possui ancestral negro, é branco -, eram necessários outros elementos que permitissem que estas pessoas fossem identificadas como negras em suas experiências cotidianas. É desta forma que o livro de Johnson nos permite refletir sobre quais são os pilares que estruturam a ideia de raça nos Estados Unidos.

O narrador de Johnson, ao descobrir-se negro, é transformado. Passa a consumir músicas negras, lê livros que falam sobre a questão da escravidão e seu fim e opta por estudar na Universidade de Atlanta – conhecida por ser a primeira universidade negra dos Estados Unidos. Apesar de ter uma formação em música erudita, tradicionalmente branca, se dedica a aprender o ragtime e, adaptando as músicas clássicas do mundo branco para ritmos negros, decide tocar a música de sua raça pelos Estados Unidos. E ele o faria se não fosse confrontado por mais uma expressão da violência racial estadunidense das primeiras décadas do século XX.

A cena de linchamento presenciada pelo narrador o faz questionar sua disposição em permanecer reafirmando sua negrura. Afinal, ele poderia ser o próximo. É importante destacar que, apesar do passing realizado pelo narrador ao fim da obra, para ele ainda é incerta a forma como o mundo o entenderá. Johnson nos convida à reflexão: para a questão racial nos Estados Unidos, qual é o critério que define a raça de pessoas miscigenadas quando a cor da pele não é suficiente para isso?

São dois os caminhos de resposta que o livro nos aponta: o meio ao qual o indivíduo está inserido – e consequentemente as práticas culturais que ele realiza e consome; assim como a violência que permeia a vida das pessoas racializadas. A partir do momento que as músicas, leituras e diversos outros elementos que complementam a postura frente ao mundo destas pessoas os associa ao “ser negro”, o temor pela integridade física passa a rodear suas vidas. Abrir mão disso, por outro lado, retira o alvo de seus peitos, mas também os obriga a sustentar uma identidade forjada, distante de familiares e com o constante temor de ter sua “verdadeira identidade” descoberta.

Assista ao vídeo do historiador Caio Arrabal Fernandez Jabbour no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI27 (8º ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas).

Ensino Médio: EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos); EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).

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