Como um branco faz um filme antirracista? 

FONTEPor Camilo Vannuchi, do UOL

A pergunta reproduzida no título é feita pelo cineasta Toni Venturi nos minutos iniciais do filme Dentro da minha pele, que estreia no domingo (23/8) na Globoplay. .

Diretor de Cabra-cega (2004), Estamos juntos (2011) e do documentário O Velho (1997), sobre o líder comunista Luiz Carlos Prestes, Toni Venturi é um homem branco, descendente de imigrantes italianos, privilegiado – e indignado. Seu desconforto diante do racismo estrutural não foi somente a gênese do novo documentário e um pilar na montagem da equipe de produção. Ele fica evidente ao longo da narrativa. E contribui para sensibilizar espectadores brancos, descendentes de imigrantes italianos, privilegiados – e indignados. Como eu.

“A miscigenação é, em primeiro lugar, produto do estupro colonial que foi praticado pelo colonizador”, alerta a filósofa Sueli Carneiro no filme.

Venturi divide a direção com Val Gomes, cientista social e documentarista envolvida com temas tão urgentes quanto violência doméstica, igualdade de gênero e violência de Estado. Val é uma mulher negra. E indígena. Começou a trabalhar no filme como pesquisadora, mesma atividade desempenhada na série Cena inquieta, dirigida por Venturi e exibida às quintas-feiras na TV Sesc. Val deu tanto pitaco, provocou tantas reflexões no diretor, que acabou virando codiretora. Sorte nossa.

O filme é bom. E necessário. Chega em ótima hora, embora todas as horas sejam boas para colocar o conforto da branquitude em perspectiva. Uma berlinda oportuna.

Vidas negras importam, mas não tanto. Marielle vive, mas não tanto. As balas da polícia militar – e os joelhos dos agentes – continuam selecionando seus alvos com precisão cirúrgica. Ou estética.

“Se você não sabe quem é negro e quem é branco, pergunta pra polícia. Ela sabe”, afirma a psicóloga Cida Bento no filme.

“O policial me parou e começou a revista.
— O que você faz da vida?
— Eu sou médico.
— Fala a verdade, rapaz!
Esse ‘fala a verdade, rapaz’ é muito impactante”, diz o médico Estefânio Neto no filme.

Também a mortalidade por Covid-19 é maior entre negros. Grupo de risco, no Brasil, é ser preto, morar em favelas ou cortiços onde isolamento social é utopia, correr risco de despejo e depender do trabalho presencial, braçal, muitas vezes insalubre e extenuante. Apertar-se no transporte público enquanto um influenciador digital branco reclama do isolamento meia-boca e outro vai à praia com os “tuta”, os “parça”.

“É um ambiente branco, é um ambiente rico, a gente não está acostumado; a gente pode, mas não pode”, diz Jennifer Andrade, estudante da Fundação Getúlio Vargas, no filme.

Como um branco faz um filme antirracista? Toni Venturi foi lá e fez, sem esconder seu lugar de fala nem disfarçar certo constrangimento. Ao contrário, sua condição branca e privilegiada é exposta repetidas vezes no filme. Ele está ali, no set, para ouvir.

“E nem venha me dizer que isso é vitimismo, não bota a culpa em mim para encobrir o seu racismo”, canta Bia Ferreira.

A certa altura do documentário, a funcionária pública e ativista trans Neon Cunha, nunca promovida no emprego apesar da melhor qualificação profissional, interpela o diretor do filme. Ela discorre sobre a diferença entre direito e privilégio e diz que a “cessão de privilégio é urgente”.

“— Por que não tem uma diretora preta no seu lugar e você não está orientando essa diretora preta?
— Eu convidei essas pessoas e tenho quase uma diretora preta aqui — Venturi responde, referindo-se à codiretora Val Gomes.
— Mas não é a diretora. Você me pediu um exemplo. Por que eu não cedo o espaço e quem assina, enquanto diretora, não é uma mulher negra? Isso não é para ser resolvido agora. É uma questão de futuro. ‘Existe essa mulher negra e eu vou abrir espaço para ela ser diretora’. A verdade é que vocês não cedem espaço.”

Como um branco faz uma coluna, um post, um livro antirracista?

Sou um homem branco. Hétero, cis, bisneto de italianos por todos os lados, nascido no Sudeste, pós-graduado e, sobretudo, branco. Mais do que branco: branquelo. Quase loiro. Privilegiado. Estudei em colégio particular, sempre morei na região central, a geladeira sempre repleta de supérfluos. Vinte minutos no ônibus e já estava na escola. Tive acesso aos discos, aos livros e aos filmes que busquei.

Cresci entre brancos. Estudei num colégio tradicional, de elite, com as paredes sempre pintadas e os jardins impecáveis. Cento e sessenta alunos por ano no ginásio. Duzentos e quarenta alunos por ano no colegial. Nenhum negro, nenhuma negra. Talvez um ou dois, pode ser, de tal forma mimetizados para evitar a violência dos brancos que, em perspectiva, torna ainda mais agressiva e evidente a cultura de segregação.

Entrei na faculdade em 1997. Jornalismo na USP. Vinte alunos na turma da noite, vinte e cinco na turma da manhã. Nenhum negro, nenhuma negra. Não havia cotas.

Não havia cotas nos anos 1980, quando fui criança. O que havia era Mussum, Tião Macalé e Vera Verão. A TV nos ensinava a gargalhar quando um personagem era chamado de crioulo ou macaco.

Não havia cota nos anos 1990, quando fui adolescente. Ouvíamos Gil, Milton, Djavan, Itamar, Chico César, vibrávamos com Cafu e Ronaldo, mas as capas de revista eram propriedade de brancos. Xuxa era branca. Juba e Lula eram brancos. Barrados no baile eram brancos. Os livros mais vendidos eram escritos por brancos. Machado de Assis também era branco. Lima Barreto, Stuart Hall, tudo branco.

Há algo de muito errado numa sociedade que naturaliza esses apagamentos.

Há algo de muito equivocado em quem não concebe a dívida histórica.

Há algo de perverso em quem é conivente com o racismo recreativo, com o branqueamento, com a violência de Estado.

Há algo de insuportável em quem chama de identitária uma luta que é tão ampla e urgente.

As vítimas do racismo não são somente as vítimas do racismo. Um país inteiro é vitimado por ele, todos os dias.

Como é viver dentro da tua pele?

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