Como um discurso de Harry Belafonte, morto aos 96, mudou minha vida

Músico e ativista criticou cobiça corporativa nos direitos civis e amortecimento do pensamento radical de ativistas

FONTEPor Charles M. Blow, na Folha de S. Paulo
Harry Belafonte, em Nova York, posa para foto em 2016 (Foto: Todd Heisler/The New York Times)

No verão de 2013, participei de um dia de palestras na Fundação Ford, em Manhattan. Intitulado “O Caminho pela Frente para os Direitos Civis: Buscando a Transformação”, o evento foi promovido para marcar o cinquentenário do movimento dos direitos civis.

Meu painel ocorreu pela manhã, mas fiquei para acompanhar a sessão da hora do almoço porque Harry Belafonte ia participar, além da ativista Dolores Huerta. Eu tinha estado com Belafonte pessoalmente uma vez antes e o admirava e respeitava tremendamente.

Não conheci o Belafonte que meus pais conheceram –o jovem e bonitão cantor de calipso. Eu o conhecia como representante honrado e eminente da América negra, alguém cuja voz agora rouca parecia apenas aprofundar a seriedade de sua mensagem.

Belafonte, que estava com 86 anos na época, não decepcionou. Suas palavras transformariam minha vida. Com terno cinza elegante, ele era tão eloquente e erudito, expressando-se poeticamente, que estiquei meu pescoço para ver se ele estava lendo um texto já pronto.

Mas não havia anotações visíveis –estávamos testemunhando o brilho de Harry Belafonte em tempo real. Suas palavras arderam com um fogo que não poupou ninguém.

Sentado no salão de jantar da Fundação Ford, Belafonte disse: “Acho que a filantropia é uma parte grande do problema”, porque ela não financia os criadores de transformações reais.

Disse que estivera na dúvida sobre ir ou não ao evento nesse dia, porque estava farto de pedir dinheiro a entidades, apenas para elas lhe responderem com propostas para ser ajustadas a novos critérios, com pessoas “falando ao pessoal de base como alterar sua linguagem para que possamos fazer um apelo à sua generosidade parca”.

Belafonte condenou líderes negros que, para ele, tinham sido seduzidos e silenciados pelo fascínio de se sentirem importantes, dizendo: “Quanto mais dinheiro ofereceram a nossos líderes, quanto mais poder eleitoral e quanto mais os líderes puderam ficar sentados em suas salinhas, mais esses líderes foram perdendo de vista completamente o que estava acontecendo na base, nas comunidades”.

“Tornamo-nos uma sombra de necessidade em vez de uma visão de poder.”

Ele criticou a suspensão da pressão sobre o establishment político após as vitórias iniciais do movimento pelos direitos civis. “Nos rendemos à cobiça, a nossos prazeres hedonistas. Destruímos o movimento dos direitos civis. Olhando para a grande colheita de conquistas que tivemos, homens e mulheres jovens de nossas comunidades foram correndo para o banquete de Wall Street, das grandes empresas. E, assim, por não estarem prestando atenção, deixaram o campo abandonado.”

Belafonte até encontrou tempo para fazer um comentário sobre o hip-hop. Gostava das origens de rua do gênero, mas achava que ele se deixara corromper pela cobiça corporativa. “Wall Street ouviu o tilintar. E então os comerciantes chegaram e começaram a enfeitar essa cultura com todas as distrações que acabaram por tomar conta dela.”

A avaliação que ele fez do presidente Barack Obama em seu segundo mandato foi intransigente e áspera. Disse que Obama havia sido “uma causa de esperança, uma causa de oportunidades e possibilidades, e acho que dotamos aquele momento de mais sentido do que o momento estava disposto a dar”.

Ele não acreditava que o presidente enxergava “sua governança do modo que gostaríamos que ele enxergasse”. Prosseguiu: “Acho que o único ingrediente essencial que está faltando na máquina de pensamento de Obama é que ele sufocou o pensamento radical”.

Nesse ponto, discordei dele. Não era que o próprio Obama tivesse sufocado ou suprimido o pensamento radical, mas que, para a sociedade como um todo, sua presença havia sugado muito do ar da sala quando se tratava da discussão de questões raciais.

Essa dinâmica começou a mudar em 2012, quando Trayvon Martin foi morto por George Zimmerman, e depois de Zimmerman ser absolvido das acusações de homicídio doloso e culposo, dias antes da palestra de Harry Belafonte. Essa absolvição e o movimento Black Lives Matter mudariam Obama e sua Presidência, sendo a gênese de um dos legados duradouros de Obama: a aliança My Brother’s Keeper.

Mas o argumento sobre o amortecimento do pensamento radical ressurgiu ao longo da palestra de Belafonte e foi a parte da qual mais me lembrei. “Onde estão os pensadores radicais?”, questionou.

Belafonte explicou que nessa fase de sua vida ele passava a maior parte de seu tempo “incentivando os jovens a serem mais rebeldes, mais irados, mais agressivos em incomodar aqueles que estão acomodados com nossa opressão”.

Era um dia quente de julho, então resolvi voltar à redação do New York Times a pé. Enquanto caminhava, a pergunta de Belafonte se repetia na minha cabeça. Me dei conta de que eu vinha fazendo muito pouco como escritor, cobrindo e comentando a sociedade e seus sistemas, em lugar de realmente contestá-los. Eu corria o perigo de deixar que a vaidade profissional me embalasse até eu pegar no sono. Estava desperdiçando uma oportunidade e uma responsabilidade.

A pergunta de Belafonte viveu comigo daquele dia em diante e transformou o que eu escrevi e como escrevi. Alguns anos atrás, levou-me a escrever meu livro mais recente, “The Devil You Know: A Black Power Manifesto”. Foi a tese desse livro, invertendo a Grande Migração para consolidar o poder negro em alguns poucos Estados do sul, que motivou minha mudança para Atlanta.

Já escrevi várias colunas que mencionaram Belafonte, e ele sempre me telefonava depois. Escrevi uma apreciação das vidas notáveis dele e de seu melhor amigo, Sidney Poitier, quando ambos completaram 90 anos —eles nasceram com uma semana de diferença entre um e outro. Um trecho do meu livro incluiu a inspiração de Belafonte. E no ano passado escrevi uma coluna sobre a morte de Poitier.

A cada vez, Harry Belafonte expressou seu agradecimento. No momento em que escrevo isto, só espero que eu tenha mostrado claramente que quem estava agradecido era eu. Que ele me ajudara a esclarecer meu pensamento e minha missão numa época em que eu corria o risco de tratá-los como coisas sem importância maior.

Tradução de Clara Allain 

Texto originalmente publicado em The New York Times

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