Como uma poça de sangue impulsionou a luta dos imigrantes no Reino Unido

Conheça trajetória do ativista de origem indiana Suresh Grover, cuja vida foi marcada por episódios de discriminação e luta contra o racismo na Grã-Bretanha.

Por Kavita Puri Do G1

A família de Suresh Grover deixou o Quênia e chegou à Grã-Bretanha em 1966, em busca de uma vida melhor e de uma educação britânica. Mas o que ele viu e ouviu vivendo no país nos anos 1970 foi crucial para seu destino.

Suresh era uma criança quando chegou. Seu pai, de origem indiana, tinha educação superior e havia sido funcionário público britânico. Mas na cidade de Nelson, na região de Lancashire, o único trabalho disponível para imigrantes das ex-colônias britânicas no sul da Ásia (Índia, Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka) era em fábricas.

O menino sofreu com o racismo aberto. “Nosso professor de carpintaria nos chamava de mestiços – e todas as crianças riam”, conta Suresh. Ele cursou uma escola secundária local, onde era conhecido como Billy.

“Suresh era um nome estrangeiro e eles não queriam me chamar assim.”

Suresh conta como seus colegas o lembravam todos os dias que ele era “diferente”. “Alguém começava uma briga e todos me cercavam, não havia opção a não ser me defender. Em todo intervalo, havia aquele clima de briga.”

E muitas jornadas de volta para casa eram marcadas por problemas.

“Eles sabiam que você passaria por ali, então você era cercado novamente e tinha que brigar. Minha primeira reação foi ficar apavorado. Eu tentava argumentar que era hindu e não queria brigar por causa do (líder pacifista) Mahatma Gandhi. Era ridículo. Eles só riam e me batiam.”

Suresh diz acreditar que nunca se tornou “antibranco” porque sempre foi alvo de pequenas gentilezas em sua infância.

Um gesto de solidariedade ainda é nítido em sua lembrança. Por um longo período, ninguém se sentou ao seu lado na escola. Um dia, porém, três meninas brancas se aproximaram de sua mesa pedindo para sentar por ali.

Ele ficou impressionado com a atitude delas. E uma das meninas perguntou se ele gostaria de sair com ela.

“Eu perguntei: ‘Por que você quer sair com um ‘paki’ (diminutivo para carga pejorativa para ‘paquistanês’)?’ Reagi de forma ruim. Entendi o ato de gentileza dela, mas estava muito bravo. Pensava: ‘Você realmente quer sair com um ‘paki’? Está realmente disposta a sofrer as consequências?'”

Ele não aceitou a proposta. “Mas sempre me lembrarei dela e gostaria de revê-la para agradecer.”

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1973
Muitos pioneiros oriundos do subcontinente indiano lembram como foram vistos com curiosidade ao chegar à Grã-Bretanha do pós-guerra. Kulwant Sehli chegou em 1954 com 3 libras no bolso (o equivalente a 73 libras de hoje, cerca de R$ 430) – o máximo que poderia ser trazido da Índia devido a rígidos controles cambiais.

Crianças que viam o turbante de Kulwant o chamavam carinhosamente de “marajá”. Ele afirma que incidentes racistas eram raros nos anos 1950. Mas nos anos 1970 ocorriam quase toda vez que saía à rua.

No começo dos anos 1950 havia cerca de 43 mil naturais do Sul da Ásia na Grã-Bretanha. Mas no começo da década de 70 os números já tinham alcançado cerca de meio milhão – impulsionados por reuniões familiares e asiáticos deixando o leste da África (muitos indianos tinham imigrado para países como Quênia, Uganda e Tanzânia no século passado, mas resolveram ou tiveram de deixar esses países quando estes conquistaram a independência).

A imigração se tornou um tema político quente. E o partido de extrema direita National Front (Frente Nacional) estava em trajetória crescente no Reino Unido.

Suresh Grover aponta o ano de 1973 como o momento em que as coisas ficaram feias em Nelson, com a chegada dos skinheads (membros de subcultura jovem ligada à classe trabalhadora nos anos 60, e que nos anos 70 se aproximou a grupos de extrema-direita; muitos raspam a cabeça, daí o nome). Ele lembra com detalhes do encontro com eles numa noite de sábado, quando ele e o sobrinho estavam no cinema para ver o filme mais recente de Clint Eastwood.

Uma gangue de skinheads se aproximou, esfaqueou Suresh e quebrou a mandíbula de seu sobrinho. Ele foi a uma delegacia e conversou com um oficial graduado. Suresh diz que nenhuma ocorrência nem depoimento foi registrado, e que a polícia nunca apurou o caso.

“Eu sabia que era diferente e que não me aceitariam. Você percebe que sua vida é muito barata, e isso te queima por dentro, machuca e te deixa com raiva.”

O pai de Suresh havia vivido a violência do separatismo em 1947, que dividiu a Índia e abriu espaço para o nascimento do Paquistão. Sua primeira reação foi pensar que Suresh – um hindu – havia sido atacado por um muçulmano.

“Meu pai não entendia por que uma pessoa britânica me esfaquearia, ele pensava ter sido outro asiático. Ele acreditava no povo britânico – e sabia que isso não era verdade, mas tinha que acreditar para sobreviver em um lugar como Nelson.”

Suresh se cansou e deixou Nelson para sempre. Frequentou uma faculdade por um ano em Burnley e depois se mudou para Southall, um subúrbio a oeste de Londres.

Ele ficou surpreso com a quantidade de indianos por lá. Mas então um episódio mudou sua vida. Seu despertar político se deu numa parte movimentada do coração de Southhall.

Em 4 de junho de 1976, Suresh, então com 22 anos, se deparou com uma poça de sangue no chão. Ele perguntou a um policial que estava por ali sobre o que havia ocorrido e soube que alguém havia morrido na noite anterior. Ele lembra as palavras exatas do policial – era “apenas um asiático”.

Suresh ficou furioso pelo descaso do policial. Foi buscar um pedaço de pano vermelho para cobrir o sangue. Como sinal de respeito, empilhou tijolos em volta para que ninguém pisasse ali. E colocou um sinal de que alguém havia morrido.

Naquele momento, Suresh nem sabia quem era a vítima. Mas à noite todos já tinham conhecimento do nome: Gurdip Singh Chaggar. O estudante de 18 anos tinha sido assassinado por racistas. Suresh e centenas de jovens de sua geração tomaram as ruas em protesto. O sangue no cimento ainda não havia sido limpo.

“Foi a primeira vez em que jovens – a maioria asiáticos, mas com um pouco de afro-caribenhos que moravam na região – ocuparam as ruas e se organizaram como um movimento jovem contra a violência racial e o assédio policial em Southall”, afirma Suresh.

“A geração mais velha estava totalmente atrapalhada e com medo do que éramos capazes. Tinham realmente medo do que a polícia poderia fazer contra nós.”

Geração seguinte
Muitos da primeira geração haviam baixado a cabeça diante de abusos. Gurhurpal Singh, um representante da geração seguinte, cresceu na cidade de Leicester. Ele era um estudante nos anos 1970 e hoje é um professor da universidade Soas, em Londres, especializada em estudos sobre Ásia, África e Oriente.

“Acho que a primeira geração, em geral, não era muito reativa. Estavam inclinados a ser indiferentes em relação a atos de violência e discriminação ou aguentar até o máximo. Sentiam que eram visitantes nesse país.”

Quando Chaggar morreu, Kulwant Sehli já vivia na Inglaterra por 22 anos, mais do que a metade de sua vida. Ele diz que sua geração teve que ser “surda e muda para o abuso racial”, mas afirma entender porque a geração de seus filhos reagiu e lutou de volta. “Por que eles tinham que ser mandados embora? Aqui é a casa deles.”

Após a morte de Gurdip Singh Chaggar, Suresh Grover se tornou um dos fundadores do movimento asiático jovem de Southall. Grupos similares se espalharam pelo país.

O slogan do grupo era: “Venha o que vier, estamos aqui para ficar.”

“Éramos britânicos asiáticos com políticas afirmativas, e queríamos unir as pessoas para combater o racismo”, afirma Suresh. Ele lembra que naquela época não havia divisões entre a comunidade do sul da Ásia. “Percebemos que religião, etnia e identidade não importavam para o que fazíamos, então essas questões não apareceram.”

Suresh se viu no olho do furacão novamente três anos depois quando, semanas depois das eleições gerais de 1979, o partido extremista Frente Nacional decidiu fazer uma reunião na prefeitura de Southall.

Milhares de pessoas – sobretudo asiáticos, mas também opositores do racismo – foram às ruas protestar. Suresh estava no meio de tudo.

Ele testemunhou um padre branco defendendo uma senhora idosa que havia sido atingida por um policial com um porrete. “O padre foi acusado de comportamento ameaçador”, afirma Suresh.

Mas a morte de um homem que protestava contra a Frente Nacional, um professor de origem neozelandesa chamado Blair Peach, se tornaria emblemática.

A morte de Blair Peach
Clement Blair Peach (1946-1979) era um professor branco de origem neozelandesa que foi morto durante uma manifestação da liga antinazista contra a Frente Nacional em Southhall. Morto por ferimentos na cabeça, um júri apontou a causa como acidental; sua companheira, Celia Stubbs, batalhou por muitos anos por uma nova investigação do caso. Em 2010 a polícia de Londres reconheceu que um de seus oficiais foi provavelmente responsável pela morte de Peach.

Estudante universitário à época, Gurhurpal Singh assistia a tudo pela TV. Ele diz acreditar que os eventos em Southall após as mortes de Gurdip Singh Chaggar e Blair Peach tenham marcado uma virada para comunidades do sul da Ásia pelo país.

“O significado de 1976 e de 1979 é extremamente importante porque Southall era uma área de forte presença da comunidade do sul da Ásia, e grupos de extrema direita estavam incitando uma reação de forma deliberada, e essa reação veio de forma muito forte em resposta à morte de Blair Peach, definindo um limite – nós não aceitaremos isso.”

Para Suresh, esses eventos foram cruciais não apenas para ele, mas para muitos de sua geração. Ele hoje é um conhecido ativista contra o racismo.

E a conclusão a que ele chegou no final dos anos 1970 ainda guia seus passos.

“Nós iremos morrer nesse país. Não temos um lugar para chamar de lar como nossos pais: Índia, Paquistão, Bangladesh ou Sri Lanka. Queremos viver como cidadãos iguais. E se isso significa ficar e lutar isso é o que temos que fazer e não recuaremos nem um centímetro.”

 

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