Num país que renega, rejeita e apaga as suas origens, em uma sociedade que invisibiliza mentes e corpos que a construíram, cada vez mais desponta, entre frestas de uma história embranquecida na base da violência, palavras que são sementes.
Conceição Evaristo é uma das responsáveis por essa semeadura. Nascida em Belo Horizonte em 29 de novembro de 1946, a menina negra e pobre cresceu rodeada de palavras, histórias contadas, inventadas ou “aumentadas” por pessoas da sua família.
A desenvoltura em ficcionalizar e contar histórias ela herdou, mas a curiosidade e o encanto pelo livro a levou adiante. Devorou tudo o que podia quando sua tia começou a trabalhar em uma biblioteca. Na escola, ganhou um prêmio de redação, já antecipando o reconhecimento que viria décadas depois.
Conceição Evaristo conta, nessa entrevista exclusiva, que escrever a ajudou a encarar o racismo que ela viveu enquanto adolescente e, depois, como mulher negra na sociedade brasileira. Era sua forma de encarar as angústias, de tornar tudo mais suportável.
Em 1990, aos 44 anos, ela passa a publicar alguns escritos nos Cadernos Negros, série de antologias editada pelo coletivo Quilombhoje. Em 2003, tem seu primeiro romance publicado, Ponciá Vivêncio, que foi bem recebido pela crítica e é tema de diversas teses e dissertações. Em 2006, publica Becos de memória; em 2008, Poemas da recordação e outros movimentos e, em 2011, Insubmissas lágrimas de mulheres. Em 2014, lança seu livro mais aclamado, vencedor do Prêmio Jabuti em 2015, Olhos D’água. Em 2016, Histórias de leves enganos e parecenças e, em 2018, Canção para ninar menino grande.
Conceição Evaristo, hoje, tem o reconhecimento que é negado à maior parte das escritoras e escritores negros no país. A doutora em Literatura Comparada e professora aposentada também tem livros traduzidos para o inglês, francês, espanhol, italiano e árabe.
Suas poesias, contos, ensaios e romances ecoam as vozes e experiências de mulheres negras e da população afro-diaspórica no Brasil. Ao escrever e pensar a partir desse lugar, Evaristo cria o conceito de “escrevivências”, que significa e permite a reescritura da própria história brasileira a partir das vozes de pessoas negras.
Nesta entrevista, ela fala sobre seu contato com a literatura, analisa o apagamento de escritoras e escritores negras/os da História da Literatura Brasileira, e o lugar conquistado pela “escrevivência” na literatura, na academia, nos movimentos sociais e na vida.
Também fala sobre o feminismo e deixa uma mensagem para jovens escritoras negras que, segundo ela, são as responsáveis por dar continuidade ao legado das insubmissas palavras da literatura brasileira escrita por mulheres negras.
Agradeço à generosidade da escritora nessa entrevista e à Cauane Maia, jovem pesquisadora, autora do livro Vozes negras em Florianópolis: escrevivências antropológicas do Morro das Mulheres (2020),que contribuiu com algumas das perguntas e provocações que aqui seguem.
“A nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande e, sim, para acordá-los de seus sonos injustos”.
Catarinas – A senhora é referência na literatura brasileira contemporânea, especialmente por colocar a escrita das mulheres negras em um patamar de maior visibilidade e reconhecimento. Como foi o seu contato com a literatura e o que lhe levou à escrita?
Conceição Evaristo – O meu primeiro contato com a literatura, eu tenho afirmado com ênfase e bastante orgulho, é com uma literatura oral. Eu não nasci rodeada de livros, eu nasci rodeada de palavras. Meu contato foi com a literatura oral, com a contação de histórias, com a fabulação do dia a dia, as coisas que aconteciam e poderiam virar história porque sempre uma pessoa conta de uma maneira, outra pessoa conta de outra. No ambiente familiar tem muito isso. “Ah, não foi isso não”, aí retoma o assunto, aumenta um pedacinho. Então essa constante presença da palavra em casa, da palavra dita e também dramatizada – meu tio velhinho contava histórias, se o personagem morria esse meu tio se jogava no chão. Esse convívio com o texto oral me foi muito benéfico.
Ao mesmo tempo que tinha essa riqueza da oralidade, tinha uma curiosidade muito grande pelo material impresso. Minha mãe pegava revistas, jornais velhos, e brincávamos. Hoje eu vejo que a gente fazia uma oficina da palavra. Por exemplo, se a gente via uma imagem de uma mulher e ela tivesse com uma expressão triste, minha mãe, na brincadeira, fazia um jogo: “será que ela está triste? O sapato dela está apertado?” E aí vinha aquela brincadeira toda. Essa brincadeira em torno do material impresso despertou a curiosidade para a leitura. E como a minha mãe, naquele momento, lia, a minha tia, que me criou, também lia muito, então isso também incentivou, criou esse desejo do livro, da escrita. E como o livro era um material muito distante da realidade da gente, aquilo que é distante às vezes se torna o objeto mais desejante ainda, é aquilo que você quer.
Depois, quando eu chego na escola e tenho esse contato com a biblioteca, aí eu me encanto. Eu fiz o primário em uma escola muito boa, em que tinha muito incentivo para a leitura, para a escrita, o grupo Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte. E há um momento em que uma das minhas tias vai ser servente na Biblioteca Pública de Minas Gerais, de Belo Horizonte. Ela trabalhava na casa da Dona Etelvina, Etelvina Vianna Lima, que foi inclusive a que instituiu o curso de Biblioteconomia na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e minha tia trabalhava com ela. Parte do dia a minha tia cumpria as funções domésticas, outra parte do dia ela ia para a biblioteca – era aquela pessoa que ficava sentada ali encarregada de guardar as bolsas de quem chegava. Aí, eu digo, nesse momento eu ganho uma biblioteca inteira, porque eu tinha livre trânsito nessa biblioteca, era como se a minha tia fosse dona dela. Essa biblioteca ficava perto da Praça da Liberdade. Eu ia à biblioteca, pegava os livros, vinha para a praça, sentava na praça, lia, devolvia, às vezes no mesmo dia. É assim que o texto escrito entra na minha vida, e entra com muita potência, com muito desejo, muito encantamento. Eu tinha um encantamento pelo livro, pela leitura. E curiosidade. Eu era muito curiosa.
E a escrita, como ela se dá?
A escrita se dá também nessa época. Quando eu já ganho a competência da escrita, e essa escola Barão do Rio Branco, na minha época tinha algo que se chamava “composição”. Então tinha que fazer muitas composições.
A minha carência me levou muito para o universo da ficcionalização. E tinham muitas redações assim: “um passeio na fazenda do meu tio” ou “minha festa de aniversário” ou “meu presente de Natal”, e eu ficcionalizava muito. Não tinha tio que tinha uma fazenda melhor do que o meu, de tanto que eu inventava.
E também, por exemplo, essa minha tia que lia, ela tinha muita necessidade de anotar. E ela anotava acontecimentos diários, por exemplo, a galinha garnisé botou hoje não sei quantos ovos; paguei a prestação da minha máquina; dei a minha contribuição para a capelinha Nossa Senhora do Rosário, então esse exercício do registro me incentivou também na escrita. E quando eu termino o primário eu ganho um Prêmio de Redação, que eu digo que foi o meu primeiro prêmio de literatura.
Que importância tem a literatura e a escrita na sua vida?
À medida em que eu entro na adolescência, a escrita passou a ser pra mim um lugar de eu desaguar todas as minhas dúvidas, tanto é que eu tinha um diário. E aí a escrita entra muito como um suporte. Eu acho que a adolescência que eu tive, que é uma adolescência também de extrema pobreza, de muitas interrogações, de muitas dificuldades, já vivendo mesmo a questão racial, que eu estudava numa escola onde a maioria era de alunas e alunos brancos, então algumas coisas pra mim, eu não tinha resposta, aliás, nada eu tinha resposta, eu sabia que alguma coisa estava fora do lugar, mas eu não sabia o que, onde, como. E a escrita entra como exercício de falar dessas coisas fora do lugar, de indagar essas coisas, de fugir dessa realidade, mas, ao mesmo tempo, me potencializar pra enfrentar a realidade. Eu acho que se eu não escrevesse e não lesse na adolescência, eu fico sempre achando que eu adoeceria, do ponto de vista emocional. Eu acho que eu surtaria.
E hoje ainda é assim?
Talvez como um suporte, me ajuda a estar de pé. Porque se eu não escrevesse… eu não sei dançar, não sei cantar, então a escrita, pra mim, é o modo como eu acesso o mundo, como eu acesso a vida.
E como a oralidade, as experiências cotidianas, elas entram na sua escrita? É daí que você cunha o termo “escrevivências”? O que significa exatamente esse conceito?
Eu venho trabalhando com esse termo desde 1994, 1995, quando eu faço a minha dissertação de mestrado, e aí eu começo a fazer um jogo entre escrever-viver, escrever-se-ver, escrever-se-vendo, escrevendo-se, até chegar ao termo escrevivência. Mas o ponto de nascimento dessa ideia traz um fundamento histórico, que é esse processo de escravização dos povos africanos e eu estou pensando muito nas mulheres africanas e suas descendentes escravizadas. E por isso que eu digo: “a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para acordá-los de seus sonos injustos”.
Quando eu digo isso, uma imagem que sempre me perseguiu foi a imagem da mãe preta, aquela mulher escravizada dentro da casa grande e que era responsável pela prole colonizadora. E essa mulher num dado momento do dia, uma das funções dela como corpo escravizado dentro da casa grande, era levar as crianças para dormirem, e ela vai para esse exercício de contar histórias.
Mesmo nesse momento, ou talvez mais ainda nesse momento, esse corpo dessa mulher é escravizado e escraviza-se justamente o aspecto fundamental do ser humano, que é a fala. Ela não usa a fala como necessidade própria, a fala dela é usada em função do outro, então ela tem que contar histórias, ela tem que adormecer os meninos da casa grande, ela tem que inventar alguma coisa.
Então, esse processo de criação dessa mulher é um processo que também é direcionado, quer dizer, você pensa no corpo de uma mulher escravizada, um corpo que está inscrito na economia da produção, porque é um corpo que produz, na economia do prazer, porque é um corpo que quando o amo quiser tomar ele toma nas suas funções sexuais, e é um corpo que está inscrito na economia da educação porque essa mulher está muito mais com esses filhos da casa grande do que a própria sinhá, e é um corpo escravizado também a partir da fala. A fala dela também é um utensílio de trabalho escravizado.
Ora, se a fala dessa mulher da casa grande é uma fala escravizada, a nossa escrita não. Pelo contrário. A nossa escrevivência é pra acordar os da casa grande. Então esse conceito nasce justamente com a tentativa de borrar parte dessa história, é o reverso. E é o reverso também por um outro aspecto, porque aí já tem escrita. Se antes a fala da mulher negra ficou condicionada a uma oralidade, hoje ela tem também a escrita. E ter a escrita é justamente apropriar das armas da casa grande.
A escrevivência tem sido apropriada por diversas áreas do conhecimento, assumindo, inclusive, o caráter metodológico. Como a senhora percebe esse fenômeno?
Na medida em que esse termo vai sendo aprofundado por mim mesma e por outras pessoas que se apropriam do termo, e acabam usando até como aparato teórico mesmo, pra uma escrita ou para ler outra escrita, ele ganha uma amplitude muito grande. Hoje, você vê a pessoas trabalhando com a escrevivência na área do teatro, da música, da geografia, então extrapola aquele momento em que eu pensei o termo.
Há algum risco de esvaziamento do seu sentido, assim como vem acontecendo com o conceito da “interseccionalidade”, como aponta a Patricia Hill Collins, que denuncia que termo tem “se perdido na tradução”?
Eu não tenho mais controle sobre isso. Risco de esvaziamento há, isso não há sombra de dúvidas, deve estar acontecendo por aí com certeza. Por isso que eu gosto muito de afirmar da necessidade de as pessoas pensarem a genealogia do conceito. Eu estou sempre repetindo de onde nasce esse conceito. Ele não foi criado do nada, é criado inclusive de uma vivência, de uma experiência, de uma condição, de uma memória ancestral, de uma memória histórica. Então esse esvaziamento, ele pode acontecer, é algo que escapole. Corre o risco também desse termo virar um termo guarda-chuva que serve pra tudo.
Mas ocorre, também, desse aparato teórico ser utilizado em produções que realmente se aproximam do termo, que guardam essa experiência histórica. Quando uma tese de geografia se debruça sobre a questão do desfavelamento, da perda do lugar de pertença dessas pessoas, e esse estudo traz como sujeito de pesquisa alguém que, por herança histórica, é mais sensível à essa produção, então com certeza esse termo não se esvazia, ele caminha par a par com o fundamento de sua genealogia. Quando uma fotógrafa negra está pesquisando sobre fotografia de famílias negras vai caminhar muito próximo, há muita similaridade entre pensar isso no texto literário e pensar nesse texto fotográfico. Então, há essa possibilidade também de proximidade e de incorporação mais profunda do termo.
Agora, há outra questão que eu acho que é rica nesse sentido porque as formas de aprendizagem, ou as formas de ensinamento, as formas de pensar, as teorias, são sempre pensadas a partir de modelos, de paradigmas de pensadores brancos. E aqui no Brasil a gente importa muito as teorias europeias. Algumas têm muito a ver conosco, outras não fazem sentido. Como nós também dialogamos muito com as experiências negras americanas, que eu diria que fazem sentido sim porque são povos diaspóricos, são experiências que se cruzam.
Mas a possibilidade desse termo também ganhar uma amplitude e se transformar em material ou suporte teórico em vários espaços – agora eu estou falando especificamente do espaço acadêmico, das experiências acadêmicas -, é muito bom também porque são pensamentos, é uma episteme nascida de experiência negra.
Assim como a experiência branca nos orientou em muita coisa, eu acho que a experiência negra, a experiência indígena, a experiência das mulheres, ou a experiência das pessoas que por A ou por B sofrem processos de exclusão e essa experiência se transforma em material de pensar o mundo, de pensar a vida, é muito bom, necessário e justo que sejam valorizadas como locais de conhecimento.
No livro Vozes negras em Florianópolis: escrevivências antropológicas do Morro das Mulheres, lançado em 2020, a autora Cauane Maia utiliza a escrevivência para contar sobre as vivências e experiências de uma comunidade do Morro da Caixa/Monte Serrat, localizada na região central da capital catarinense, cuja demografia é majoritariamente negra e feminina. Nesse local, as moradoras e moradores elaboraram cadernos de memórias onde contavam suas próprias histórias e a história do lugar, uma vez que nos meios “formais” tais narrativas eram negligenciadas. Assim como a própria Carolina Maria de Jesus, comunidades negras criam estratégias de preservação das suas memórias e narrativas. Qual a importância social dessas e desses contadores de histórias e quais os caminhos que precisamos percorrer para torná-las acessíveis?
A história não é história, são histórias. Até então, o que a gente tem são histórias. Se pensar na História ciência, nós temos histórias escritas a partir das categorias sociais hegemônicas, e as histórias que não nascem nesses espaços sociais são obliteradas. A importância de contar essas histórias é porque causa uma reviravolta. Essas histórias não só contestam essa história que está aí escrita, como apresenta fatos novos que foram esquecidos por alguns motivos.
Que memória é celebrada? Quem tem direito à memória? E eu acho que essas histórias trazem outros tipos de celebração, elas trazem outros tipos de memória.
E eu estou falando aqui do ponto de vista da História ciência, mas é o mesmo do ponto de vista também da ficcionalização e da fabulação. Eu acho que a ficcionalização a partir de uma autoria negra, autoria indígena, cigana, gay, é uma ficcionalização – aqui a gente não está medindo se é mais bonita ou menos bonita – que traz outros dados ficcionais, ou que cuida desses dados ficcionais de uma outra forma. Eu penso muito como a mulher negra é representada na literatura brasileira, por exemplo, há uma grande diferença entre Gabriela Cravo e Canela e Dora, de Becos da Memória. Então, essa autoria criada do lado de cá traz um outro texto.
Esses textos são necessários para compreender a totalidade brasileira. O Brasil, um país tão diverso, a representação ficcional não pode ser só lida, criada ou entendida, valorizada, a partir de uma autoria masculina e branca ou a partir das mulheres brancas.
O nosso sujeito de ficcionalização aqui é muito amplo. E não precisa ser só uma ficcionalização escrita, se a gente for escutar o que o povo fala, o que o povo cria através de anedotas, através de canções, é muito amplo pra ficar reduzido a isso. Então essa escrita, as histórias criadas a partir de novos sujeitos, engrandecem a literatura nacional. Ela dá mais conta do conjunto da literatura nacional.
A senhora considera que escrever a partir da experiência já foi considerado algo menor na literatura? A cultura africana diaspórica é tema de muitas produções, mas há diferença de recepção quando a/o própria/o negra/o fala?
Há memórias que são consideradas que não fazem sentido. O grande escritor brasileiro, e que ninguém critica por ele escrever memórias, foi Pedro Nava. Por que as memórias de um homem branco são consideradas literatura, que vale a pena ler? Por que algumas criações literárias fazem sentido de ser e outras não? Nunca vi ninguém criticando Pedro Nava porque Pedro Nava escrevia memória, pelo contrário, ele é valorizado por ser um grande memorialista brasileiro.
Eu acredito que há algo que ultrapassa a questão da literatura. Esse juízo de valor é atravessado por outras questões. Não é só o texto literário, é quem está ali atrás daquele texto. Quem produz aquele texto. Por que tanta dificuldade de perceber que Carolina Maria de Jesus questiona a vida, traz pro texto dela problemas existenciais como Clarice Lispector traz? Os olhos que leem Clarice Lispector leem com muito mais boa vontade do que leem Carolina. Como se aquela mulher só falasse da fome.
É bom que vem aí Casa de Alvenaria dela. Já em Quarto de Despejo a gente percebe Carolina Maria de Jesus como escrita que toca na solidão, percebe Carolina Maria de Jesus a pulsão pela escrita que todo e qualquer escritor tem, mas não se fala disso. Fala-se de uma fome como se estivesse falando só da fome física. Eu acho que tem aí alguma coisa. Não reconhecer essa autoria na sua humanidade, como pessoas que estão produzindo arte sim, pessoas que estão produzindo questionamentos sim, que estão tratando das interrogações, dos dramas existenciais sim.
Em uma entrevista que você concedeu, você disse que receber o Prêmio Jabuti foi um “prêmio solidão” por não ver pessoas negras na plateia e no palco. As pessoas negras têm alcançado mais lugares na literatura e nos espaços de poder na sua opinião nos últimos anos, ou ainda há uma grande invisibilidade?
Tem mudado, não na mesma proporção da necessidade. Ainda o espaço da literatura, os prêmios literários, os júris, as pessoas que fazem parte desse público, ainda são majoritariamente pessoas brancas. Mas tem mudado por nossa reivindicação. A Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que é considerada um dos maiores eventos literários, foi marcada, em 2017, pela presença negra. Muito pelas nossas reivindicações. As portas não são abertas por oferecimento, são abertas por busca.
Sem sombra de dúvidas é um cenário que vem mudando, mas a gente não pode se iludir. Por exemplo, o fato de ter algumas escritoras negras ou de o livro mais vendido no Brasil atualmente ser de autoria de uma mulher negra, isso não significa que nós temos muitas representatividades. Eu acho que os espaços ainda são diminutos. Você tem uma escritora negra ali, uma escritora aqui, um escritor negro ali, outro aqui, mas ainda não é o justo. Todos esses lugares de representatividade, de poder, intelectual, econômico ou cultural, ainda a grande marca é a presença branca.
Nesse sentido, qual é a importância de iniciativas como a dos Cadernos Negros? E que desafios a literatura brasileira tem ainda para ser mais inclusiva?
Um dos desafios que a literatura brasileira tem para superar essa invisibilidade seria a reescritura da história da literatura brasileira. A história da literatura brasileira ainda não incorporou com avidez a potência das escritoras, das mulheres em geral. E, falando das mulheres negras, essa história da literatura brasileira, essa história que está escrita, deixa lacunas intensas.
Ao reescrever essa história da literatura brasileira, uma das pessoas que tinha que aparecer com mais veemência seria justamente a Maria Firmina dos Reis [1822-1917]. É o primeiro romance brasileiro e é de autoria de uma mulher negra. Como o primeiro romance brasileiro também foi escrito por um homem negro, [Antônio Gonçalves] Teixeira e Sousa [1812-1861]. Solano Trindade [1908-1974] não é incorporado como poeta modernista. É preciso urgente, é um papel dos estudiosos em reescrever essa história da literatura.
E, cada vez mais, vemos pequenas editoras competindo com grandes editoras. Nesse processo pandêmico, teve muito essa questão das editoras, do livro, houve uma dificuldade maior. Ao mesmo tempo, há uma atuação das pequenas editoras que se impuseram, que estão aparecendo nos festivais, nas feiras de literatura, então há um dinamismo muito grande dessas pequenas editoras, e elas estão conseguindo se lançar no campo de mercado do livro. Também estão conquistando prêmios. Um autor ou uma autora que ganha um prêmio literário que vem por uma editora pequena é muito bom pra essa editora.
Há um mercado espremido, mas há também essa mobilização dessas editoras, grupos como Quilombhoje. O Quilombhoje há mais de 40 anos vem publicando literatura, um ano poemas e outro ano contos. E também esses grupos chamados “periféricos”, essa juventude, está aí publicando por conta própria. Esses jovens, homens e mulheres, começam publicando às vezes no que a gente chamava de editora de quintal, e vão pela força da coletividade se afirmando. Eu não diria que quebraria com a hegemonia do capital das grandes editoras, mas causa frestas, vai comendo pelas beiradas, a ponto de provocarem nas grandes editoras o desejo de nos procurar. Porque é um jogo de mercado. Não estou dizendo que essas editoras também não tenham uma linha ideológica não, tem. Mas é um jogo de mercado. O livro é um produto.
Como a senhora vê a importância da internet, das novas tecnologias, das redes sociais, para a disseminação dessas novas escritoras, das escritoras negras?
Apesar de eu ter muita dificuldade em lidar com a internet, ela tem um papel importante nesse sentido, sim. A internet é o lugar de divulgação. Eu mesma me beneficio. A internet colocou muito a minha pessoa em evidência. Apesar de que nem todo mundo tem um bom computador, tem uma boa rede, mas a internet acaba sendo um espaço mais democrático onde as pessoas podem acessar, nem todo mundo acessa com a mesma facilidade – haja vista a dificuldade de escolas cumprirem as aulas online porque nem todas as crianças, nem todos os jovens podem acessar e nem toda a escola tem esse aparato da melhor qualidade.
Mas a internet tem sido um espaço muito útil na divulgação de novos escritos, um espaço de leitura. Tem muito jovem que lê, sim, pela internet, lê pela internet, escreve pela internet, então eu acho que é uma ferramenta que, bem utilizada, tem utilidade muito grande. Não podemos negar, e acho que é irreversível, não tem como mais não usar esse mundo virtual.
Agora falando mais especificamente das mulheres negras. Além da luta e da resistência histórica que as mulheres negras fazem, elas também têm feito grandes provocações, colocado questões importantes para movimentos como o feminismo, especialmente apontando para a necessidade dessa luta ser efetivamente e profundamente antirracista. Você tem contato com o movimento feminista negro? Se considera feminista?
A minha relação com o feminismo, acho que grande parte das mulheres negras, nosso feminismo nasce do cotidiano. A grande maioria das mulheres negras são feministas na medida em que assumem a vida independente da espera dos homens, sejam eles pais, maridos, irmãos, pela própria história de vida dessas mulheres. Eu e Elzira Divina temos muita vontade de escrever uma peça levando alguns diálogos de mulheres negras, e aí a gente imagina uma mulher que o homem dela chegou em casa e diz pra ela: “vai esquentar comida pra mim”, e ela diz: “não vou não, seu fulano de tal”, e xinga de todos os nomes possíveis, e diz: “não vou, porque eu também tô cansada, eu trabalhei também”, entende? Quer dizer, essa mulher tá exercendo, está tendo uma atuação feminista, se colocando como mulher, se colocando não mais como servil àquele homem, sem ter feito teoria nenhuma, sem estar teorizando nada.
Quando eu penso que a minha mãe criou nove filhos, as quatro primeiras sozinha, e quando ela, por exemplo, no dia que um dos meus irmãos deu um tapa em uma das minhas sobrinhas, como tentando educar, falou: “não bata, não bata nela porque você é tio. Amanhã ela acha que todo homem tem o direito de pegar a mão nela”. E minha mãe nunca parou pra ler nada sobre teoria feminista nem nada, mas ela já fazia essa defesa.
Então, o nosso feminismo nasce muito com essa prática cotidiana que, muitas vezes, é construída através do discurso tido até como agressivo. Então eu me considero feminista a partir das minhas experiências mesmo, a partir da maneira como eu tive de construir a minha vida, da maneira como a minha mãe, minhas tias, mulheres que sempre trabalharam, não tiveram que lutar contra a tutela de pai, de marido, de tio, nem nada. Não estou dizendo que no interior da família os homens negros e pobres não são machistas. Não estou dizendo isso. Eles também são machistas. Mas não nos é permitido ficar na dependência deles, muito pelo contrário, muitas vezes nós trabalhamos pra poder dar suporte para esses homens, para os nossos companheiros, para os nossos filhos, nossos irmãos.
Minha relação com o movimento feminista é uma relação muito proveitosa, muito rica. Aprendi e aprendo muito com o movimento negro também, tanto o movimento negro em si quanto o movimento de mulheres, são elas o meu suporte.
Eu aprendi mais com o movimento social do que com a academia. Pelo contrário, eu acho que eu chego na academia levando experiências fortíssimas do movimento social. Então eu devo muito ao movimento social negro que foi, inclusive, o primeiro lugar que me acolheu como escritora, o primeiro lugar que legitimou os meus textos. Então eu devo muito ao movimento social negro, ao movimento de mulheres negras. E me considero feminista sim, segundo uma perspectiva negra e pobre, eu acho que isso também tem que ficar muito bem marcado.
Pensando no feminismo como um todo, por que as feministas brancas devem escutar primeiro as mulheres negras?
As feministas brancas devem escutar primeiro as mulheres negras para entenderem que as experiências das mulheres são diferenciadas, e muito diferenciadas, assim como é diferenciada também a experiência das mulheres indígenas, e, quando estamos falando de mulheres, de que mulheres nós estamos falando? Quando as feministas brancas falam de mulheres, de que mulheres elas estão falando?
Precisam escutar a fala das mulheres negras para se autorevisarem e entenderem até que ponto elas que se posicionam como feministas brancas são opressoras das outras mulheres, até que ponto uma feminista branca é opressora de uma mulher negra que está lá no fundo da cozinha dela.
Essa história de opressão das mulheres brancas em cima das mulheres negras é uma história que começa inclusive desde a escravização. A mulher colonizadora agia com a mesma rigidez que o colonizador. Então é um momento também das feministas brancas se perceberem no papel de opressoras e perceberem também a questão racial. Como a questão racial atravessa a condição da mulher negra. É uma outra condição.
Quando falamos da condição das mulheres brancas e da condição das mulheres negras, nós estamos falando de uma outra condição. Quando nós estamos falando da condição das mulheres pobres, com certeza as mulheres pobres brancas têm mais possibilidade de vencerem a opressão social do que as mulheres negras, porque a condição das mulheres negras é atravessada pelo racismo.
Para terminar, a senhora gostaria de dizer alguma coisa para as jovens escritoras negras?
O que eu diria para as escritoras que estão começando é pra elas cada vez mais se apropriarem desse direito de escrita. As nossas histórias merecem ser contadas. Precisam ser contadas. E são elas que vão continuar essa nossa saga. Então é como se fosse uma passagem de bastão. Tivemos Auta de Souza [1873-1901], Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, então é uma tradição que está se criando na literatura brasileira. Essa vertente escrita por mulheres negras, são essas escritoras novas que vão confirmar e vão sedimentar essa tradição.