Pela primeira vez, o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira dos Escritores, vai para uma mulher negra. Em sua edição de 2023, o prêmio vai para Conceição Evaristo.
A lista de finalistas incluía Martinho da Vila, Maria Villani, Marilene Felinto e Pedro Bandeira. O prêmio é um dos mais tradicionais do país e foi criado em 1962 por iniciativa do escritor Marcos Rey.
Com a democracia e resistência como base, o prêmio já havia sido dados nos últimos anos para personalidades como Frei Betto, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido, Dalmo Dallari, Milton Hatoum, Ignácio de Loyola Brandão, Aílton Krenak e os ex-presidentes da República Juscelino Kubitschek e Fernando Henrique Cardoso, entre outros.
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, será convidada para participar da homenagem, no início de novembro durante o Festival Literário Internacional de Itabira (MG), o Flitabira, organizado por Afonso Borges. Quem faz a entrega do Prêmio é sempre o ganhador do ano anterior, no caso, o Padre Júlio Lancellotti.
A escolha de Conceição Evaristo foi feita a partir de um voto dos associados da UBE. O prêmio, segundo a entidade, é concedido à personalidade que tenha publicado livro no Brasil, no ano anterior, e se destacado, pelo conjunto da obra, em qualquer área do conhecimento, valorizando e representando os ideais democráticos.
A vencedora
A mineira Conceição Evaristo publicou em 2022 o livro “Canção para ninar menino grande” (Ed. Pallas). No livro, a vencedora do Juca Pato narra as relações amorosas de mulheres negras com o personagem Fio Jasmim e a rede de afetos decorrente dessas relações.
Voz incontornável do movimento negro nacional e da própria busca por uma identidade múltipla, ela foi escolhida em 2019 como a Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti.
Conceição introduziu o conceito de “escrevivência”. Ou seja, a escrita que nasce do cotidiano, imersa em realidades pessoais e na história de uma luta. Aborda, acima de tudo, a desigualdade que marca o país, com um retrato poderoso de milhões de brasileiros.
Conceição Evaristo estreou na literatura em 1990, com seus contos e poemas na série Cadernos Negros. Seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, de 2003, expõe a discriminação racial. Cinco anos depois, a obra seria lançada nos Estados Unidos. Em 2006, ela ainda lançou Becos da Memória e coleciona dezenas de publicações no Brasil e no exterior.
Origem humilde
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. Trabalhou como empregada doméstica na capital mineira, morou na favela de Pindura Saia e apenas concluiu o curso normal aos 25 anos de idade.
Nos anos 70, passou a viver no Rio de Janeiro, onde trabalhou como professora da rede pública. Fez seu mestrado em Literatura Brasileira na PUC-RJ e é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.
Seu relato de sua infância dá a dimensão do que enfrentou para poder estudar e sobreviver:
“Como Carolina Maria de Jesus, nas ruas da cidade de São Paulo, nós conhecíamos nas de Belo Horizonte, não só o cheiro e o sabor do lixo, mas ainda, o prazer do rendimento que as sobras dos ricos podiam nos ofertar”, escreveu.
“Carentes de coisas básicas para o dia a dia, os excedentes de uns, quase sempre construídos sobre a miséria de outros, voltavam humilhantemente para as nossas mãos. Restos”, disse.
Sua relação com a palavra e a escrita também é tem um percurso único:
Não nasci rodeada de livros, do tempo/espaço aprendi desde criança a colher palavras. A nossa casa vazia de bens materiais era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos e amigos contavam. Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia, afirmo sempre. Entretanto, ainda asseguro que o mundo da leitura, o da palavra escrita, também me foi apresentado no interior de minha família que, embora constituída por pessoas em sua maioria apenas semi-alfabetizadas, todas eram seduzidas pela leitura e pela escrita. Tínhamos sempre em casa livros velhos, revistas, jornais. Lembro-me de nossos serões de leitura. Minha mãe ou minha tia a folhear conosco o material impresso e a traduzir as mensagens
Depoimento no I Colóquio de Escritoras Mineiras, Maio de 2009
Num dos trechos de sua obra ela relata:
O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia…
Hoje, o Brasil inteiro sabe.
Sobre o Troféu Juca Pato
O troféu é a réplica do personagem criado pelo jornalista Lélis Vieira e imortalizado pelo ilustrador e chargista Benedito Carneiro Bastos Barreto, conhecido pelo pseudônimo de Belmonte (1896-1947).
Sobre a UBE
A UBE, sociedade civil fundada em 1958, luta em defesa da liberdade de expressão, dos direitos do autor, da cadeia produtiva do livro e pela democratização do acesso à informação. Ricardo Ramos Filho é o seu atual presidente.
Desde sua fundação, resultante da fusão entre a Sociedade Paulista de Escritores e a Associação Brasileira de Escritores, a UBE promove atividades de ordem cultural, social e literária.
Nos últimos anos, a UBE tem se manifestado pela manutenção e fortalecimento dos princípios republicanos que devem nortear o país. Promove encontros virtuais e presenciais com escritores de relevante importância para a difusão da literatura e defesa dos direitos civis, bem como utiliza os meios eletrônicos e impressos para dar voz aos escritores, profissionais do livro e à sociedade brasileira.