Condenado a morte sobrevive a 18 tentativas de execução

Brown acordou às 5h08 do dia que acreditava ser o último de sua vida. Um guarda o acompanhou ao chuveiro às 5h51. Eram 6h27 quando Brown comeu cereais com leite. Às 8h07 já estavam preparados, no instituto correcional de Lucasville, os três produtos químicos utilizados no coquetel da morte. Às 9h31, um recurso de último minuto deixou em suspenso a execução de Brown, a quem serviram um almoço de frango com vagem, purê de batatas, salada e suco de uva às 12h28. Era sua última refeição. Às 12h48, um juiz determinou que a apelação havia fracassado. O Estado tiraria sua vida às 13h30. Em ponto.

 

Seguindo as normas ao pé da letra, os funcionários jogaram fora o primeiro coquetel e prepararam um segundo (às 13h24 e às 13h31). Até aqui, tudo era rotina. Como também deveria ser rotina encontrar uma veia no braço do condenado e injetar a dose mortal de tiopentato de sódio, barbitúrico que faz perder a consciência; brometo de pancurônio, que paralisa o diafragma e impede a respiração, e cloreto de potássio, que provoca a parada cardíaca desejada.

 

Mas às 14h01, uma equipe médica – composta por uma dezena de funcionários responsáveis pelas execuções em Ohio e cuja identidade é mantida no anonimato por ordem judicial – começou a espetar o braço de Brown. Continuaram fazendo isso até as 14h30, quando, incapazes de encontrar uma veia, saíram da sala da morte para descansar.

 

O assassino condenado – não confesso – pelo sequestro, estupro e assassinato de Tryna Middleton, de 14 anos, em 1984, suportou durante cerca de duas horas as picadas das agulhas em ambos os braços, ambos os tornozelos – que picaram pelo menos uma vez até o osso – e na mão direita. Foram pelo menos 18 tentativas. Todas fracassadas. Várias, sangrentas. A ata da execução falida diz que às 14h49, Brown secou o rosto com um lenço de papel. “Parece que ele havia chorado”. Uma das enfermeiras – como Brown chamou as mulheres que participaram da execução, numa declaração juramentada – abandonou o recinto visivelmente alterada.

 

David e Bessye Middleton, pai e mãe da vítima, que se recusaram a falar com a reportagem, contemplavam a cena separados do assassino de sua filha apenas por um vidro. Esperavam vê-lo morrer há 25 anos. A frustração dessa família – e a de Brown porque não conseguiam acabar com sua vida – foi registrada pelo sistema de gravação de circuito interno da prisão.

 

Já eram mais de 16h quando o diretor da prisão, Terry Collins, consultou o governador de Ohio, Ted Strickland, que determinou que a execução fosse suspensa durante uma semana. Collins abandonou o réu para efetuar essas ligações, não sem antes agradecer a Brown por sua “cooperação” e suas “tentativas de ajudar a equipe”. Entre as tentativas estavam flexionar seu próprio braço para fazer com que uma veia aparecesse, inclinar-se na maca para que o sangue fluísse melhor ou ajudar a amarrar um torniquete cirúrgico.

Romell Brown – de 53 anos, que passou quase 25 no corredor da morte esperando que sua sentença se cumprisse – não morreu no dia 15 de setembro passado no instituto correcional de Lucasville, e às 17h59 serviram-lhe jantar de pastel de verduras com bolachas de sobremesa e suco de uva.

Hoje, sua execução está em suspenso enquanto seus advogados preparam a audiência que revisará seu caso no próximo dia 30. Tim Sweeney e Adele Shank argumentam que uma segunda tentativa de executar Brown violaria a garantia constitucional estabelecida pela oitava emenda que proíbe o “tratamento cruel ou desumano”. “A tentativa de execução de Romell Brown em Ohio no mês passado por injeção letal foi uma mostra da pena de morte em seu estado mais bárbaro”, publicou o jornal The New York Times em um editorial no fim de semana passado.

“O que aconteceu em Ohio implica um ponto de virada”, declara Richard Dieter, diretor do Centro de Informação sobre a Pena de Morte (DPIC, sigla em inglês). “Quer seja porque nossos padrões de decência considerem cruel submeter uma pessoa a múltiplas execuções, quer seja porque isso na realidade é um experimento com seres humanos ou porque o método não funciona, a legislação tem que mudar e avançar até a suspensão da pena de morte”‘.

Curiosamente, Ohio é o único Estado, dos 35 que permitem a pena de morte, que exige por lei que a execução seja feita de forma “rápida e indolor”. Na opinião de Sweeney, advogado de Brown, essa norma foi violada.

Se na construção de seu caso – que no momento implica que o governador de Ohio postergue outras duas execuções previstas para esses meses até a primavera de 2010; outros três Estados suspenderam a pena máxima por outros motivos -, os advogados do condenado apelam à Constituição americana, também se concentram em detalhes mais concretos como o profissionalismo e o preparo das pessoas que realizaram o ritual de execução. “Nesses momentos surgem sérias dúvidas se o Estado está empregando as pessoas corretas para fazer um procedimento tão complexo”, disse Sweeney numa conversa telefônica desde Ohio. “Não resta dúvida de que quando esses barbitúricos são mal aplicados, o preso é torturado até a morte”, aponta o advogado.

Todos os Estados que praticam a pena de morte têm políticas muito rígidas que garantem a privacidade dos carrascos. A Califórnia é o Estado cujos protocolos são menos restritos. Uma em cada onze vezes, a equipe de execução de Ohio teve problemas na hora de acabar com a vida de alguém. A penitenciária defendeu seu trabalho e diz que [seus funcionários] fazem “um trabalho que a maioria das pessoas não faria”. “Fazem-no de forma profissional e adequada”, afirmou Julie Walburn, porta-voz do Centro de Reabilitação de Ohio.

A injeção letal é o método preferido para os homicídios legais praticados nos Estados Unidos e, na grande maioria dos casos, é aplicada pelos funcionários de prisões ou por uma equipe de cidadãos designados para esse trabalho. Quase nunca é feito por médicos, já que a Associação Médica Americana recomenda que a seus associados não participem de execuções porque isso viola o juramento hipocrático. “O uso de um médico para outro fim que não seja melhorar a saúde ou o bem-estar do indivíduo mina o fundamento ético básico da medicina: não ferir”, diz o Conselho de Assuntos Éticos e Judiciais de Medicina. “Se os médicos estivessem presentes nas execuções, violariam seu juramento de salvar vidas”, insiste.

“A afirmação de ‘confie em mim, que sei o que faço’ perde credibilidade quando ocorrem casos como o de Ohio”, declara Dieter. “É necessário que haja acesso, que se possa intervir sobre o processo para saber o que de fato está acontecendo e quem é responsável”, recalca. “É preciso acabar com a percepção pública de que a injeção letal é um método livre de dor”, insiste o advogado que está à frente do DPIC.

Os Estados Unidos contam com outras quatro formas de matar seus condenados à pena de morte se a injeção letal for considerada “inconstitucional” por seus legisladores (em 2007, o Tribunal Supremo suspendeu durante oito meses as execuções em todo o país até que determinou que a injeção não violava a oitava emenda; em 2006, o governador da Flórida, Jeb Bush, suspendeu a pena de morte de forma temporária depois que Ángel Díaz agonizou na maca com uma agulha em seu braço durante 34 longos minutos”. A eletrocussão, a câmara de gás, o fuzilamento ou a forca são outras possibilidades.

Nem por isso a resposta do advogado de Brown à pergunta sobre como se encontra seu cliente é menos aterradora: “Brown está extremamente inquieto com experiência”. Está tentando assumir que não morreu, mas acredita que – “com quase toda certeza” – voltarão a tentar novamente.

Matéria original

-+=
Sair da versão mobile