A Consciência Negra pressupõe auto-amor. Auto-amor pressupõe refletir sobre preterimentos afetivos

Entre tantos temas que poderíamos escrever juntos, e eles não são poucos, resolvemos revisitar um assunto espinhoso. Toda a vez que surge um novo texto sobre a questão da solidão afetiva da mulher negra, o lado preto da internet entra em polvorosa. Homens negros, na sua ampla maioria, correm para dizer que as mulheres negras também são palmiteiras, ou então a reforçar que eles não são palmiteiros. Isso sem falar do discurso do amor não tem cor. Mas se não tem, se o diagnóstico de que as mulheres negras vivenciam a solidão de maneira brutal é uma falácia, como é que a Ana Clara Pacheco conseguiu até escrever uma tese de doutorado abordando esse tema?

por Winnie Bueno e Caio César enviando para o Portal Geledés via Guest Post

Os preterimentos sociais dos quais as mulheres negras são alvo não se restringem só ao mercado de trabalho, eles se expandem para todas as esferas da sociedade, inclusive na esfera afetiva. Nós já escrevemos sobre essas questões incansavelmente. Mas é pouco. As narrativas sobre o sentimento profundo de solidão entre as mulheres negras não diminuem, pelo contrário, ao que parece, ainda que estejamos aumentando nossas possibilidades de nos reconhecermos enquanto sujeitos, nos distanciando da lógica que Frantz Fanon explica em Pele Negra, Máscaras Brancas que aborda a conexão de cidadania com as performances de branquitude por parte da população negra, mesmo com o fortalecimento das identidades raciais negras, ainda assim, as mulheres negras continuam lidando com o sentimento de insuficiência.

A ideia desse texto é trazer uma abordagem híbrida, em que seja possível em um único escrito refletir sobre as consequências da solidão afetiva para a negritude de forma ampla. É preciso dizer que solidão afetiva não está restrita ao preterimento das mulheres negras nas relações afetivas do tipo namoro, casamento. O aspecto sócio-cultural dessa questão ultrapassa o privado das relações. E é por aí que queremos começar esse diálogo.

Acredito que tratar o tema da solidão é falar diretamente, também, com os homens negros. Falar sobre o quanto estes homens pode sim, amar e ser amados. E entender que isso passa, primeiramente, por amar a si mesmo, sua cultura, seu povo. Passa por entender a masculinidade imposta, os estigmas e os estereótipos. Toda masculinidade que o mundo impõe aos homens, recai de forma ainda maior sobre homens negros. A necessidade de ser forte, duro, rígido o tempo todo. Não demonstre emoções, nem fraquezas ou sentimentos. E isso reflete também nas relações amorosas. Sobre como se da o tratamento entre homens e mulheres, sobretudo mulheres negras. Soma-se a isso, a construção da imagem do homem negro como uma ameaça pela sociedade internacional. Homens negros são a imagem do inimigo, aquele tido como um animal voraz, incontrolável, que se não for controlado pela força coercitiva do Estado pode a qualquer momento desferir sua violência natural. A ideia de que esses homens precisam estar isolados da sociedade para que a mesma esteja protegida, é a projeção de um discurso que tem uma força ideológica tamanha que até mesmo a negritude condiciona-se a perpetuar essas ideias. Portanto, a desconstrução deste ideário entre nós é fundamental. A branquitude, os meios de comunicação, a estrutura social branca não irá fazer isso, ela se mantém a partir desses pressupostos e deles retira poder. Deles não há muito o que esperar, mas entre nós, é possível potencializar essas reflexões, falar sobre as mesmas e reduzir os impactos destas nas nossas relações sociais.

A solidão da mulher negra passa inevitavelmente pela forma como homens se enxergam dentro da sociedade e dentro de relacionamentos. Todos os papéis impostos, as regras sociais, tudo, tudo conta em como agimos ao lado de uma mulher. Trazendo recorte de raça, sempre observei o quanto o romantismo não pertencia aos homens negros. Isso era como demonstrar fraqueza, ser menos homem. Eu me lembro de gostar de escrever cartas, me lembro dos outros meninos dizendo que isso não era coisa de homem. Era como se isso me fosse negado, o amor me fosse negado. Me recordo de ouvir incansáveis vezes que “homens negros não são românticos” e coisas do gênero. E isso é um dos moldes mais rígidos no mundo masculino. O romantismo,a lírica romântica, é absolutamente europeia. Não combina com os moldes de bestialidade que esses mesmos padrões ocidentais relegam à masculinidade negra.

Caio lembra das cartas que gostava de escrever. Winnie lembra das cartas que gostaria de ter recebido e nunca recebeu. Enquanto as meninas brancas, lá da época da escola, recebiam bilhetes bonitos, Winnie ajudava os meninos a demonstrarem seus interesses. Escrevia nas cartas que eram remetidas para as colegas, aquilo que ela gostaria de ler. A descoberta dos interesses sexuais e afetivos na idade escolar, as narrativas das mulheres negras sobre o seu preterimento nesse ambiente demonstra que desde a tenra idade temos a construção de uma imagem sobre as mulheres negras que fixa seus papéis sociais nas relações afetivas- sexuais. Como criadas, para servir nas atividades domésticas, para servir aos desejos sexuais fetichizados, mas jamais para construir relacionamentos sólidos, afinal, são corpos sem mentes, conforme as palavras de bell hooks.

Essa ideia, de um corpo sem mente, é o que fundamenta uma série de padrões sobre relacionamentos. E também é o que consubstancia o fenômeno da palmitagem, esses homens que constantemente são descritos como ameaças imprimem no seu inconsciente que a afeição de uma mulher branca, de forma consensual, destrói esse paradigma. Sabemos, portanto, que não só não o elimina como fortalece os contextos que representam as mulheres negras como corpos-objetos cujo o afeto não é necessário. Afinal, se nem os seus iguais são capazes de criar laços afetivos com essas mulheres, como outros o farão?

Quando você soma isso a um padrão de beleza imposto, podemos ter o mínimo de noção do porquê mulheres negras são tão maltratadas. Homens negros ensinados que demonstrações de sentimento são fraquezas. Ensinados que se relacionar com mulheres brancas traz a eles um status maior na sociedade, mais valor e respeito entre os amigos. Homens, que por não ver valor em mulheres negras, se negam as demonstrações de sentimento. Porque solidão não é somente a ausência de alguém do lado, mas também a desvalorização daqueles que dizem nos amar. É também aquele sem fins de piadas depreciativas, sobre cabelos, ancas e malemolências. Homens negros que, ao odiarem mulheres negras, odeiam a si mesmos. Nessa constante é que a ascensão social do homem negro se conecta com a escolha de uma parceira branca, ainda que de status financeiro inferior. Óbvio que esse fenômeno no Brasil se dá de forma mitigada, a ascensão social dos homens negros é pífia, se dá quase que exclusivamente a partir dos mesmos meios. Mas invisibilizar que os homens negros que alcançam algum prestígio social, ainda que este seja hipócrita visto que a branquitude não reconhece esse prestígio de forma total, sejam no meio do entretenimento ou no meio acadêmico, dão preferência quase que exclusiva em relacionar-se com mulheres brancas seria no mínimo, desonesto.

A solidão afetiva da mulher negra se expande. O sentimento permanente de solidão é comum para as mulheres negras, chegando ao ponto de ser uma constante. Sabemos que estamos destinadas a solidão afetiva, contudo estamos em um momento em que se constroem estratégias entre as próprias mulheres negras para superar as angústias da solidão. Outras formas de afeto que não estão calcadas sobre essas repetições históricas, mas isso é papo para outro texto.

A chave aqui é tentar, mais uma vez, insistentemente, falar sobre a necessidade de reconhecimento mútuo, de formas de realizar o auto-amor entre nós e sobre nós. A valorização plena do seu semelhante, a consolidação de formas de amar que se estabeleçam a partir da possibilidade de afeto pelo sentimento de afeto, e só por isso. Um afeto em que a valorização da negritude se possibilite.Amorosos não por interesse, não por estarmos com alguém que nos dê, diante da sociedade, um valor que seja um potencializador das nossas vontades enquanto sujeitos, de todas elas. Amor por amor a nós mesmos. Amor por auto-amor.

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