A crescente compreensão do impacto do binômio racismo/sexismo na produção de privilégios e exclusões vem produzindo maior solidariedade entre as mulheres.
A cada novo 8 de março, Dia Internacional da Mulher, celebra-se o contínuo crescimento da presença feminina no mundo dos negócios, nas esferas de poder, em atividades secularmente privatizadas pelos homens, e, em geral, se omite o fato de as negras não estarem experimentando a mesma diversificação de funções sociais que a luta das mulheres produziu. De regra, considera-se satisfatório que, num conjunto de perto da metade da população feminina do país, apenas uma ou outra mulher negra ocupe posição de importância. E, ademais, esses casos solitários são emblemas utilizados para desqualificar as denúncias de exclusão racial a que se acha submetida. O 8 de março deste ano encontra as mulheres negras brasileiras imersas em intensas atividades preparatórias à sua participação na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, convocada pelas Nações Unidas, que ocorrerá na África do Sul em setembro deste ano.Elas vêm esperançosas com os resultados da histórica Conferência Regional das Américas, preparatória da conferência mundial ocorrida no Chile em dezembro último. Organizadas na Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras Rumo à III Conferência Mundial Contra o Racismo, as mulheres negras brasileiras trabalharam ativamente para dar visibilidade ao racismo e à discriminação racial na Declaração e no Plano de Ação da Conferência Regional, documentos consensuados pelos Estados da região que reconhecem: o racismo como fonte do colonialismo e da escravidão; a persistência dessas práticas discriminatórias no presente, o caráter determinante que elas têm na pobreza e marginalização social dos afro-latino-americanos e, sobretudo, as múltiplas formas de opressão que a conjugação de racismo e sexismo produzem nas mulheres afro-descendentes.Apesar de ignorada pela imprensa brasileira, a Conferência Regional das Américas e, em especial, o protagonismo nela dos afro-latino-americanos, são enfatizados em matéria do The New York Times de 4 de março, segundo a qual ‘‘em Santiago, um forte lobby dos grupos afro-americanos deu nova visibilidade à discriminação racial na América Latina”. Por seu lado, a atuação política da Articulação de Mulheres Negras nessa Conferência mereceu da alta comissária das Nações Unidas, Mary Robinson, o seguinte comentário: ‘‘As mulheres negras fizeram toda a diferença”. Fruto da estratégia adotada – trabalho, informação, transparência e participação coletiva nas decisões.
Mas, como costuma dizer Jurema Werneck, uma das coordenadoras da Articulação de Mulheres Negras, nossos passos vêm de longe.
As mulheres negras assistiram, em diferentes momentos de sua militância, à temática específica da mulher negra ser secundarizada na suposta universalidade de gênero ou do ser mulher. Isso é a temática da mulher negra que invariavelmente era tratada como subtema da questão geral da mulher mesmo num país em que as mulheres afro-descendentes compõem perto de metade da população feminina. Ou seja, o movimento feminista brasileiro recusava reconhecer que há uma dimensão racial na temática de gênero que estabelece privilégios e desvantagens entre as mulheres. Isso se torna mais dramático no mercado de trabalho onde mulheres negras são preteridas no acesso e na promoção a melhores ocupações em função do eufemismo da ‘‘boa aparência”, cujo significado prático é: preferem-se as brancas, de preferência louras.
É a consciência desse grau de exclusão que vem determinando o surgimento de organizações de mulheres negras de combate ao racismo e ao sexismo tendo por eixos fundamentais a capacitação de mulheres negras, o estímulo à participação política, à visibilidade, à problemática específica das mulheres negras na sociedade brasileira, à formulação de propostas concretas de superação da inferioridade social gerada pela exclusão de gênero e raça, e à sensibilização do conjunto do movimento de mulheres para as desigualdades intragênero que o racismo e a discriminação racial produzem.
A crescente compreensão do impacto do binômio racismo/sexismo na produção de privilégios e exclusões vem produzindo maior solidariedade entre as mulheres. Importantes redes e articulações nacionais feministas do Brasil, como a AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras, e a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos expressam cada vez mais vontade política para enfrentar o que Guacira de Oliveira, coordenadora da AMB, considera o despreparo do Movimento Feminista para enfrentar um debate mais aprofundado sobre a questão racial.
Nesse momento as feministas, segundo Oliveira, estão ‘‘dispostas a contribuir para a radicalidade dessa construção para deslocar-se do lugar da hegemonia branca” em prol de uma sociedade racialmente diversificada em todas as suas dimensões. A Rede e a AMB preparam importantes documentos sobre a mulher negra como contribuição do Movimento Feminista à Conferência Contra o Racismo, na África do Sul. A deputada Esther Grossi, na Câmara Federal, e a deputada Lúcia Carvalho, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, deram prioridade, nesse 8 de março, à temática da mulher negra. Cresce a cumplicidade entre as mulheres brasileiras.