Coronavírus expõe o racismo ambiental: negros são o corpo que o Estado secou

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No país, cerca de 29 milhões não usufruem de saneamento básico e 6,2 milhões não têm água potável. E em sua maioria são negros

Por Paulo Ramos no Rede Brasil Atual

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O saneamento básico e a distribuição de água potável nas favelas e periferias jamais foram serviços efetivamente oferecidos no Brasil. Nesses territórios de extrema vulnerabilidade, atores demarcados por classe, gênero, sexualidade e sobretudo ‘raça’, em que negros e negras têm seus corpos marcados de forma atemporal, são condicionados a sobreviver na miséria.

Em tempos de pandemia de coronavírus e quarentena, para sobreviver precisamos de procedimentos de higienização do corpo, mas antes o saneamento básico e a água potável são fundamentais, não só para limpeza, mas para o bem comum.

Sabemos, no entanto, que o princípio da universalidade constituído ao bem comum não atende às demandas do povo preto e periférico. A seletividade aos corpos pretos impede o acesso a direitos e às instituições de Justiça, e nessa perspectiva o direito ambiental é uma das faces das estruturas racistas.

As práticas racistas na sociedade quanto ao meio ambiente reproduzem o racismo institucional, resultando no racismo ambiental. O conceito de racismo ambiental teve origem nos Estados Unidos (1970), diante da poluição de uma fábrica, a partir dos descasos que afetaram a maioria da população de cor preta. Os negros norte-americanos começaram a protestar e tratar tal situação como uma luta por justiça ambiental, priorizando a isonomia e a equidade nas relações sociais. Diante daquela situação desumana, o meio ambiente passou a ser pleiteado como um direito fundamental para uma vida saudável.

A jornalista e pesquisadora Tânia Pacheco, coordenadora-executiva do projeto Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, na Fiocruz (RJ), enfatiza que no caso brasileiro poderíamos dizer que desigualdade e exclusão andam em sintonia. “Maior que e menor são meros sinais matemáticos, pois determinam a privação de algo bem mais importante que determinadas funções. Estabelecem diferenças que se traduzem de forma contundente: de um lado, uma absurda concentração de riquezas; do outro, a privação, o desrespeito à dignidade, a classificação econômica abaixo da linha da indigência. Para uns, desdobra num exercício abusivo da noção de cidadania plena, para outros significa simplesmente a falta sequer da garantia dos direitos básicos, ou seja; não cidadania.”

A desigualdade é um dos fatores determinantes, mas a raça/cor é um delimitador para retirar a garantia de cidadania de cada indivíduo marcado por um sistema de opressão edificado nas dinâmicas da escravidão. O poema Navio Negreiro, do poeta abolicionista Castro Aves (1847-1871) sintetiza o confinamento dos negros escravizados:  E a fome, o cansaço, a sede/ Ai! quanto infeliz que cede/ E cai pra não mais se erguer!.. / Vaga um lugar na cadeia/ Mas o chacal sobre areia/ Acha o corpo e quer roer/ Ontem a Serra Leoa/ A guerra, caça ao leão/ O sono dormido à toa Sob as tendas d’ amplidão/ Hoje… o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tento a peste por jaguar (…). A oralidade construída por meio da poética confirma um passado que se repete no presente, mas de outras formas, direcionado à mesma raça-cor.

Diante do acontecimento devastador da pandemia do coronavírus é preciso lembrar que as favelas e periferias já sobrevivem ao isolamento da exclusão social e à insegurança da violência policial, somados ao racionamento da água potável e à falta de saneamento básico.

Neste período, as favelas habitadas em sua maioria pelo povo preto e pobre pedem socorro, atenção e gritam aos quatro ventos por água para que suas mãos possam ser lavadas, ensaboadas e higienizadas com o sabão bruto que resta, por que o álcool em gel não existe mais. A favela negra, com casas apertadas, infectadas como o navio negreiro de Castro Alves.

A palavra “secar” pode ter diversas acepções: “enxugar-se, esgotar, deixar de correr, fazer cessar, paralisar, emagrecer, reduzir, zerar, desaguar ou definhar.”

Esse esgotamento do corpo que Estado prática desde o Brasil Colônia é verbalizado em corpos marcados. Todavia, esse definhamento é o processo contínuo de uma herança escravocrata que se reflete no racismo institucional. O meio ambiente consubstanciado ao princípio da universalidade se reduz nas práticas racistas das instituições públicas, excluindo determinados grupos da contemplação e usufruto do bem comum.

O Brasil tem a maior vegetação da América do Sul, além de concentrar a maior quantidade de água potável. Apesar disso, é o país com maior número de pessoas em estado vulnerabilidade no tocante ao acesso aos recursos naturais essenciais, que lhes são negados. Segundo dados oficiais (Unicef Brasil, 2017), cerca de 29 milhões de brasileiros não usufruem dos serviços de saneamento básico e 6,2 milhões não têm água potável em suas casas. Distribuição de água e saneamento básico são pautas distantes de uma política pública efetiva.

Todo esse aparelhamento estatal e soberano é uma herança aos corpos negros habitantes das favelas, morros, mangues, becos e ruelas nas periferias e favelas do Brasil.

O corpo que o Estado sistematicamente seca na falta do saneamento básico e água potável paulatinamente enfraquece e definha corpos d’ águas, no entanto, é reprodução de uma prática colonizadora.

Paulo Ramos é jurista, mestrando no programa de Ciências Sociais e membro do Observatório do Racismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

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