Cotas, Prá que ti quero? A Política Social de Cotas Raciais

Cotas, Prá que ti quero? A Política Social de Cotas Raciais

José Ricardo d’Almeida

A polêmica das cotas raciais está cada vez mais envolvente e é uma maneira de aumentar o grau de politização da sociedade brasileira, expondo suas mazelas e fragilidades sociais e mais do que isso, ela contribui para a ampliação da consciência democrática e da cidadania.

Sabemos que política é conflito de interesses dos grupos e classes sociais em oposição e contradição, negociação e acordos pactuados. Política é o exercício do poder e o arbítrio para decidir.

A política social é parte do processo estatal da alocação dos recursos provenientes da contribuição de toda a sociedade, estabelecida através do confronto e da negociação sobre sua utilização. O acordo e a decisão sobre sua distribuição por parte do Estado, expõem o dilema entre acumulação e equidade e entre necessidades e as demandas sociais.

Opções para redistribuição: escolhas e regras.

As políticas sociais visam corrigir os desequilíbrios no processo de acumulação e a promover a justiça social.

As políticas sociais podem ser preventivas, redistributivas e compensatórias, sendo as Ações Afirmativas e as Cotas denominações das medidas que visam garantir e promover os direitos de igualdade de oportunidades combinado ao reconhecimento de um tratamento desigual para os desiguais.

Isto se dá com a pactuação de um patamar de correção dos desequilíbrios sociais existentes, através de mudanças setoriais e reformas segundo diversos critérios de demanda e dos recursos a serem disponibilizados. São considerados ainda, os padrões de acumulação ou inversamente, um padrão de desigualdades aceitáveis, o perfil da escassez e o limite das possibilidades de mudanças destes padrões.

Portanto, será através da negociação e do conflito que serão definidas as escolhas, os critérios e o tipo da ação governamental vai refletir o resultado deste jogo.

Como são definidas as políticas sociais?

Num Estado democrático coexistem as diversas forças políticas e poderes envolvidos neste jogo, o executivo, o legislativo, o judiciário e as organizações da sociedade civil: partidos, sindicatos, movimentos sociais, etc. Não raro, algum poder ou seus representantes julgam possuírem o mandato exclusivo para promover as regras unilateralmente e daí resultam as famosas leis para “inglês ver” e os irrealizáveis projetos sem recursos.

Com a nova Constituição, a modernização do Estado e um pouco mais de ética na política, a garantia da cidadania para todos se tornou um requisito para uma verdadeira democracia no Brasil. Isto implica, o reconhecimento de uma nova dinâmica social que ainda encontra forte resistência por parte dos setores privilegiados pela não-observância das conquistas expressas tanto na Constituição como no fortalecimento de setores sócio-políticos emergentes.

A introdução na agenda política do conceito de Ações Afirmativas, bem como das cotas raciais passam por este reconhecimento da emergência de um movimento negro como força política e social legítima amparada e reconhecida pela Constituição e pela sociedade civil.

Deve-se ainda observar que estas políticas sociais fazem parte dos acordos internacionais assumidos pelo país e que envolvem uma ampla agenda de compromissos entre instâncias de poder e organizações públicas e privadas e o não cumprimento, acarreta diversas sanções como o bloqueio do repasse de verbas, créditos, etc. Além do que, muitos dos acordos prevêem recursos específicos para investimentos para correção das desigualdades sociais e entre elas as raciais.

Em certo momento deste processo, quando ele já foi definido, mas ainda fazendo parte do jogo político e muitas vezes do espetáculo da política, certos atores sociais fazendo valer aquele famoso jogo para a platéia, entram em cena, afinal em política não existe espaço vazio. Aí, surgem os “prejudicados” (sinceros, mas ingênuos), contrariados em seus interesses e seus porta-vozes (mais oportunistas que sinceros), abrindo-se a brecha para o campo jurídico. Contudo, o Judiciário é apenas uma das instâncias existentes neste jogo de interesses, pressões e contrapressões, mais ou menos suscetível a capacidade de mobilização dos setores sociais envolvidos.

“Espernear” também é um direito democrático.

Uma política social ao ser formulada envolve múltiplos atores sociais para a definição de suas metas, suas implicações legais e avaliação de seus impactos sociais, já que acarretam sempre transferência de recursos de um segmento social para outro.

Em princípio a política de cotas universitárias para estudantes afrodescendentes não acarreta qualquer grande volume de distribuição ou de realocação de recursos, já que está operando com recursos (vagas) existentes.

As resistências a sua implementação provém sobretudo, dos setores sociais médios afetados em seus privilégios já que acarreta o aumento da competitividade entre este grupo de estudantes então beneficiados pela ausência de um critério mais democrático para a distribuição das vagas.

Por outro lado, existe ainda uma resistência ideológica às cotas raciais que vem dos setores intelectuais que construíram suas carreiras e convicções baseadas no mito da democracia racial e que tentam formar uma barreira às mudanças resistindo a qualquer alteração no seu status quo. Não estando dispostos a ceder a qualquer forma de persuasão, argumento lógico ou mesmo a negociação política, são esses, a quem o destino reserva o papel de novos ideólogos do racismo brasileiro.

Diante deste tipo de resistência e da “estabilidade” das desigualdades raciais entre negros e brancos é que se pode presumir que um certo caráter impositivo das cotas (como de resto das políticas sociais) se faz necessário, e que foi reclamado até por parte do próprio movimento negro, caso contrário, estariam sujeitas a uma série de medidas e artifícios protelatórios.

Se optasse de outro modo pelo democratismo toda uma série de contestações, impasses e ambigüidades viriam à tona através dos infindáveis debates, audiências, conferências, etc. impedindo a sua implementação.

Coube a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) o papel pioneiro na adoção das cotas universitárias. O Rio de Janeiro por se tratar de um estado politicamente importante e de cujo debate e resultados se poderá avaliar melhor através das reações, quais serão as medidas complementares necessárias a sua efetivação pelos demais estados e universidades públicas.

Curiosamente, as cotas raciais já adotadas por alguns órgãos públicos federais não causaram qualquer resistência visível como as cotas estudantis (apenas recentemente o Estadão em 24/02/2003 publicou um editorial em tom dramático). Nem mesmo, entre as empresas que tiveram estabelecido o critério de cotas para negros, mulheres e deficientes para o fornecimento de serviços e produtos àqueles órgãos manifestaram oposição ou resistência. Sem bem que ainda, não se tenha divulgado qualquer balanço destas medidas, bem como ainda não se saiba sobre os mecanismos de controle previsto para seu acompanhamento.

A característica sempre controversa das políticas sociais é que faz que em relação às cotas raciais especialmente, se possa ter como oposição e a favor tanto conservadores, liberais e gente de esquerda.

Sob este aspecto político-ideológico vale destacar que a lei de cotas aprovada na Assembléia Legislativa do estado do Rio de Janeiro foi proposta por um político de um partido de direita (PPB) e hoje é também contestado por outro político do mesmo partido que argüiu sobre sua constitucionalidade.

Deve-se ainda ressaltar por uma questão de justiça e fidedignidade aos fatos que o projeto que resultou na lei de cotas foi originado pela Ong EDUCAFRO que desenvolve um programa educacional chamado Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) iniciado na Baixada Fluminense e que se irradia por regiões pobres da cidade do Rio de Janeiro e São Paulo e que tomou a iniciativa de interpelar o governo estadual através do ministério público para uma cota de vagas na UERJ para seus alunos. Esta experiência já vinha sendo desenvolvida junto a PUC-RJ com centenas de alunos aprovados com direito a bolsa de estudos e com um excelente aproveitamento comparado à média dos estudantes naquela universidade de jovens oriundos da classe média e dos custosos cursinhos de acesso ao seu disputado ingresso.

Foi uma iniciativa pessoal feita através de um colaborador do PVNC, membro do PT na baixada Fluminense e que foi levado por uma divergência local a uma aproximação com o político do PPB que veio a se tornar o propositor da lei de cotas. O acaso que somado ao oportunismo tanto produz o herói de ocasião como obscurece os verdadeiros heróis e faz o espetáculo da política.

As cotas raciais, além de justas politicamente favorecem uma verdadeira integração entre os alunos negros e brancos no ambiente universitário é apenas um dos diversos ganhos que os míopes sociais teimam em omitir, além do que a diversidade estimula a criatividade, fortalece a tolerância e a democracia.

Além das cotas universitárias.

Também os colégios públicos de excelência como o próprio Colégio de Aplicação da UERJ (CAP-UERJ) deveriam adotar as cotas de maneira exemplar.

No município do Rio de Janeiro foi recentemente decretado pelo prefeito uma isenção de impostos para que os colégios particulares possam absorver alunos provenientes da rede municipal e que são parte do excedente de alunos das escolas públicas, neste caso, também se deveria tornar mais transparente as concessões destas bolsas. E de que modo se poderá admitir os alunos negros senão por meio de cotas? Será que neste caso também se oporá o mérito como argumento dos opositores para que os alunos negros tenham acesso a estas vagas nas escolas particulares que optarem pela renúncia fiscal? Afinal a renúncia fiscal tem a finalidade de viabilizar uma política social, que como vimos precisa passar por um debate democrático com contras e a favor posicionados. Mas o mais importante já está garantido, os recursos, agora faltam detalhar os critérios para que seja atingida uma meta de redução da desigualdade racial.

A sociedade, o movimento negro e poder municipal precisam manifestar-se sobre os critérios que irão nortear estas concessões de bolsas sob o risco de termos recursos públicos beneficiando apenas um setor melhor informado da população.

O movimento que se forma em defesa das políticas afirmativas deve se manifestar exigindo critérios compatíveis como os que se já desenvolvem para as cotas universitárias. Assim, se evitará que a oposição das cotas raciais se mova com tanta desenvoltura expondo a população negra como sua cúmplice pela ignorância ou omissão a um direito que é seu. Ou o pior tornando-a “cúmplice da sua exclusão ofertando espaços inexistentes para os negros na mídia para que alguns exercitem sua vocalidade em defesa das teses dos sinhôs” como bem assinala a filósofa Sueli Carneiro.

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Referência bibliográfica:

Abranches, S. e outros.

(1989) “Política Social de Combate a Pobreza”, Jorge Zahar editores RJ

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