A criminalidade negra no banco dos réus – desigualdade no acesso à justiça penal

A criminalidade negra no banco dos réus - desigualdade no acesso à justiça penal

Coordenação: Sérgio Adorno

Equipe:

– Amarylis Nóbrega Ferreira
– Cristina Eiko Sakai
– Leila Maria Vieira de Paula (Geledés)
– Jacqueline Sinhoretto
– Marcelo Gomes Justo
– Sonia Maria P. Nascimento (Geledés)

(pesquisadores)

Assessoria:

– Angélica Mello de Almeida (jurídica, Geledés)
– Eliana Blumer Trindade Bordini (estatística)
– Mauricio Pereira Nunes (informática)
– Túlio Kahn (informática)
– Carlos César Grama (informática)
– Mário Eduardo Bianconi Baldini (informática)
– Raquel Mitiyo Uyeda (informática) Instituto da Mulher Negra – Geledés, FORD, FAPESP e CNPq

Resumo

Pesquisa realizada em convênio entre NEV/USP e Geledés-Instituto da Mulher Negra (São Paulo). Apoio da Fundação FORD, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.

A igualdade jurídica constitui um dos princípios fundamentais da democracia moderna. Como se sabe, este modelo jurídico-político sustenta que todos os cidadãos devem gozar de iguais direitos civis, sociais e políticos, independentemente de suas diferenças de classe, etnia, gênero, geração ou convicções religiosas e político-ideológicas.

O papel do sistema de justiça é justamente assegurar os direitos do cidadãos e protegê-los contra qualquer tipo de ofensa.

A sociedade brasileira convive com amplas parcelas de sua população excluídas dos direitos, a despeito da reconstrução da normalidade democrática após vinte e um anos de regime autoritário. Diferentes clivagens contribuem para este cenário social: situação ocupacional, carência de profissionalização, baixa escolaridade, gênero, origem regional, idade e, acima de tudo, cor. Negros – homens e mulheres, adultos e crianças – encontram-se situados nos degraus mais inferiores das hierarquias sociais na sociedade brasileira, como vêm demonstrando inúmeros estudos e pesquisas.

A exclusão social é reforçada pelo preconceito e pela estigmatização. No senso comum, cidadãos negros são percebidos como potenciais perturbadores da ordem social. Talvez por isso constituam também alvo privilegiado das investigações policiais. A propósito, alguns estudos brasileiros recentes questionam a suposta maior contribuição dos negros para a crimiminalidade, tal como Sellin evidenciou ser equivocada essa suposição em seus estudos, hoje clássicos, sobre a criminalidade negra nos Estados Unidos. Não obstante, se o crime não é privilégio da população negra, a punição parece sê-lo. Certamente, este não é um fenômeno exclusivo e típico da sociedade brasileira. Em outras sociedades, a discriminação sócio-econômica é freqüentemente associada e reforçada pela discriminação racial e étnica. Nos Estados Unidos, onde há uma longa tradição de confrontos sociais entre brancos e negros, a questão jamais passou desapercebida, tendo sido objeto de não poucas investigações científicas.

O que parece diferenciar a sociedade brasileira de outras sociedades é a extrema tolerância que temos para com esta forma de discriminação. Em contraste, nos Estados Unidos uma forte resistência contra a discriminação racial é inerente aos movimentos de defesa de direitos humanos, em particular direitos civis. Em geral, quando compara a história da sociedade brasileira com a história de outras sociedades, o cidadão comum normalmente acredita que nossas relações raciais não são conflituais. A fraqueza de nossas tradições históricas e políticas de denunciar discriminações contribui grandemente para solidificar e consolidar esse mito, um mito que circula livremente seja na sociedade civil seja entre os atores políticos encarregados de formular e implementar políticas públicas de respeito e preservação dos direitos humanos, mito tão forte que inclusive chegou a seduzir o imaginário de alguns cientistas sociais. Apenas um pequeno círculo de pessoas – intelectuais, políticos, avistas de direitos humanos – tem feito denúncias, através de protestos públicos  organizados, por intermédio da mídia eletrônica e impressa e, antes de tudo, por meio de seus estudos.

Em todos os estudos, há um consenso quanto aos efeitos provocados pelo efeito discriminatório das agências encarregadas de conter a criminalidade: a intimidação policial, as sanções punitivas e a maior severidade no tratamento dispensado àqueles que se encontram sob tutela e guarda nas prisões recaem preferencialmente sobre “os mais jovens, os mais pobres e os mais negros”. São estes os grupos justamente desprovidos das imunidades conferidas para as complexas organizações delinquentes envolvendo cidadãos procedentes das classes médias e elevadas da sociedade.

O núcleo teórico que articula estas questões diz respeito à persistência do autoritarismo no interior da sociedade democrática, no caso a sociedade brasileira. A sobrevivência do autoritarismo social em suas múltiplas formas de manifestação – isolamento, segregação, preconceito, carência de direitos, injustiças, opressão, permanentes agressões às liberdades civis e públicas, em síntese, a violação de direitos humanos – indica que as forças comprometidas com os avanços democráticos não lograram superar as forças comprometidas com o passado, sobretudo escravista, disto decorrendo a sobrevivência do autoritarismo social.

Não são poucos os obstáculos que contribuem para impedir a universalização da cidadania plena, entre os quais extremas desigualdades sociais, acentuado corporativismo que introduz sério desequilíbrio na organização de interesses coletivos, baixa participação dos cidadãos nas organizações representativas dos distintos grupos sociais. Tudo converge no sentido de preservar uma sociedade profundamente dividida, atravessada por diferentes identidades culturais, estilos de vida e padrões de consumo que impedem a constituição de uma esfera de realização do bem-comum. Tais características societárias dificultam sobremodo a institucionalização dos conflitos, cujas soluções, com muita freqüência, apelam para o domínio das relações intersubjetivas, permanecendo restritas à esfera do mundo privado, cujas regras de regulamentação da conduta não obedecem, como se sabe, aos mesmos princípios que regulam o Estado democrático de Direito. Tais conflitos tendem a ser solvidos à base das relações entre fortes e fracos, sem a mediação do mundo das instituições públicas e das leis.

Com referência a esta última questão, poderosos impedimentos encontram-se incrustados no aparato judicial, cujo funcionamento não parece assegurar uma efetiva distribuição da justiça social. No caso do sistema de justiça criminal, os principais obstáculos residem no conservadorismo que caracteriza a ação de não poucos agentes judiciários, entre os quais expressivos segmentos da magistratura, a par da rígida estrutura corporativa que o sustém bem assim do estilo patrimonial de administração pública que ainda singulariza o cotidiano de suas agências. O principal efeito deste funcionamento é a consolidação de um sistema de justiça criminal que restringe direitos e que é incapaz de manter a ordem nos termos estritos de um controle democrático da criminalidade.

No interior dessa problemática, o principal objetivo da pesquisa foi identificar, caracterizar e explicar as causas do acesso diferencial de brancos e negros ao sistema de justiça criminal no Brasil. Este objetivo requereu uma análise da distribuição das sentenças judiciais para crimes de idêntica natureza cometidos por ambas categorias de cidadãos. Partimos da hipótese – aliás, verificada e comprovada em inúmeros estudos americanos – de que a justiça penal é mais severa para com criminosos negros do que para com criminosos brancos. Esta hipótese, uma vez comprovada, põe em relevo a desigualdade de direitos que, por sua vez, compromete o funcionamento e a consolidação da democracia na sociedade brasileira.

O universo empírico de investigação compôs-se de todos os crimes violentos de competência dos tribunais singulares (roubo, tráfico de drogas, latrocínio, tráfico qualificado, estupro), ocorridos no município de São Paulo, julgados em primeira instância no ano de 1990, observados a partir de amostra estatisticamente representativa. Os dados da pesquisa – nesta etapa, restritos à análise dos casos de roubo qualificado que representam 37,90% da amostra – permitiram a caracterização das ocorrências criminais, a caracterização do perfil social de vítimas e de agressores bem como a caracterização do desfecho processual. Os resultados alcançados, até este momento, indicam que:

– não há diferenças entre o “potencial” para o crime violento revelado pelos réus negros comparativamente aos réus brancos;

– réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial, bem como experimentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e maiores dificuldades de usufruírem do direito de ampla defesa, assegurado pelas normas constitucionais vigentes;

– em decorrência, réus negros tendem a merecer um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos comparativamente aos réus brancos.

Quanto aos réus e seus direitos, resultados preliminares indicaram maior incidência de prisões em flagrante para réus negros (58,1%) comparativamente aos réus brancos (46,0%). Tal aspecto parece traduzir maior vigilância policial sobre população negra do que sobre população branca. Há maior proporção de réus brancos respondendo a processo em liberdade (27,0%) comparativamente aos réus negros (15,5%). Réus negros dependem mais da assistência judiciária proporcionada pelo Estado (defensoria pública e dativa, correspondendo a 62%) comparativamente aos réus brancos (39,5%). Em contrapartida 60,5% dos réus brancos possuem defensoria constituída, enquanto apenas 38,1% de réus negros se encontra nessa mesma condição. É bem provável que essa desigualdade de atendimento resulte da  inserção diferencial de brancos e negros na estrutura sócio-econômica.

Por sua vez, a natureza da defensoria parece influenciar o direito à apresentação de provas testemunhais. Trata-se de uma garantia constitucional que tem grande peso no curso do processo penal. A pesquisa revelou que é menor a proporção de réus negros que se valem desse direito. Apenas 25,2% o fazem. Entre os réus brancos, essa proporção é mais elevada (42,3%). É elevada a proporção de réus negros que deixam de usufruir desse direito (74,8%), por comparação aos réus brancos (57,7%).

No que concerne ao desfecho processual, observou-se maior proporção de réus negros condenados (68,8%) do que réus brancos (59,4%). A absolvição favorece preferencialmente réus brancos (37,5%) comparativamente aos réus negros (31,2%). É significativo observar que a manutenção da prisão em flagrante inclina a sentença no sentido da condenação. Essa tendência é mais acentuada para réus negros (62,3% de todos os condenados negros) do que réus brancos (59,2%). Valer-se da assistência judiciária proporcionada pelo Estado é circunstância mais desfavorável para réus negros do que para réus brancos. Entre os condenados brancos, 39,5% dependeram dessa modalidade de assistência. Entre os condenados negros, a proporção eleva-se para 57,6%. Em contrapartida, dispor de assistência judiciária constituída favorece preferencialmente réus brancos. Essa modalidade de assistência responde pela absolvição de 60,9% de réus brancos. Entre os réus negros, a proporção é bem mais baixa (27,1%).

Nesse contexto discriminatório, a apresentação de provas testemunhais não parece amenizar a situação dos réus negros diante dos rigores da lei penal. De todos os brancos que se dispuseram a apresentar provas testemunhais, 48% foram absolvidos e 52% condenados.

Entretanto, entre os réus negros que se valeram desse exercício, 28,2% foram absolvidos enquanto 71,8% foram condenados. Finalmente, a maior inclinação condenatória também parece estar associada à cor da vítima. Réus brancos que agridem vítimas de mesma etnia revelam maior probabilidade de absolvição (54,8%) do que condenação (42,2%). Quando o agressor é negro e a vítima branca, o quadro se inverte. Entre estes, a proporção de condenados (57,8%) é superior a de absolvidos (45,2%).

Tudo parece indicar, portanto, que a cor é poderoso instrumento de discriminação na distribuição da justiça. O princípio da equidade de todos perante às leis, independentemente das diferenças e desigualdades sociais, parece comprometido face aos resultados alcançados.

Resultados:

ADORNO, S. e col. A criminalidade negra no banco dos réus: discriminação e desigualdade no acesso à justiça penal.

Relatório de pesquisa. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 1994. mimeo. 56p.+ anexos. (Fundação Ford, CNPq e FAPESP).

ADORNO, S. Racial discrimination in São Paulo (Brazil) criminal Justice. Paper presented at 13th World Congress of Sociology, Research Committee 29 (Sociology of Deviance and Social Control). Bielefeld (Germany), 17-22, july 1994.
mimeo. 32p.

ADORNO, Sérgio e outros. “O Judiciário e o acesso à justiça”. In: O Judiciário em Debate. org. de Maria Teresa Sadek. São Paulo: IDESP; Ed. Sumaré, 1995. pp. 9-30 ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal. Novos Estudos.

CEBRAP. São Paulo: CEBRAP, 43: 45-63, 1995.

ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e Justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa,
1996 Núcleo de Estudos da Violência – NEV – Universidade de São Paulo – USP

 

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