Fonte: Grupo de União e Consciência Negra
Por Keka Werneck jornalista em Cuiabá
Na última quinta-feira, dia 30 de julho, me encantou não só a negritude da noite fresquinha do suave inverno cuiabano. Aquela noite preta! Boa para tudo que a mente permitir. Atraiu-me, porém, o debate convocado por militantes pretos que se juntaram na sede do Grupo de Consciência Negra, na Capital, para tratar dos pecados que a mídia brasileira comete contra irmãos afrodescendentes. E me parece que a ação afirmativa mais urgente é toda aquela que consolida a idéia de que o racismo no Brasil existe – e creio que este artigo ajuda a cumprir esse papel. E existe, quer ver?
Eu fiz uma matéria, há alguns anos, sobre o racismo em Cuiabá. Não lembro mais o nome dos entrevistados, mas são pessoas comuns, que a gente vai achando, ao perguntar na redação se alguém conhece quem tenha sofrido na pele o drama do racismo. Como o racismo existe, achei rápido um carinha.
Acabou a cerveja no churrasco e ele, tido pelos amigos como amável e querido, foi o único que se dispôs, de imediato, a ir a um grande supermercado da Capital buscar mais. Num churrasco, as pessoas se vestem de terno e gravata, certo? Não, claro que não. Ele estava de bermuda e camiseta, chinelo de dedo. Saiu assim mesmo, claro! Entrou correndo no supermercado, tinha pressa de voltar para a festa. Mas foi parado. O segurança queria saber o porquê da pressa. Quem nunca entrou com pressa em um supermercado? Ele explicou, mas falava e não era ouvido. Pelo menos meia hora, foi o tempo que o rapaz gastou para se desvencilhar do preconceito.
Como o racismo existe, achei também uma moça. Filha de um médico da Capital, homem bem sucedido nos moldes que o capitalismo preconiza – ou seja, alto salário, casa, carro, viagens. O que é raro para um negro. Ela conta que entrou em uma loja – feita para bem sucedidos de Cuiabá, como o pai dela e, por conseqüência, ela – mas percebeu que ninguém vinha atendê-la. E quando veio, a pergunta foi cortante: “Essa roupa custa caro!” Insinuação de que ela não poderia pagar. A coisa vai piorando.
E como o racismo, de fato, existe, achei ainda um professor, de 40 anos, que coleciona batidas policiais. É preto, é, portanto, suspeito. Calado já está errado. Conta que, quando era adolescente, morava na periferia de uma cidade mineira, igual à maioria da população negra. Voltar para casa era um tormento toda noite que resolvia sair, porque poderia encontrar, logo ali à frente, uma viatura e, em segundos, de menino comum – em crise existencial típica da época, às voltas com seus hormônios – passava a suspeito encostado em algum muro.
O racismo existe e na reunião dos pretos no Grucon, chamada “A Mídia em Preto e Branco”, sob a noite preta, a Jaqueline Costa, membro do NEGRA/UNEMAT, convidada para falar sobre autoestima negra, trabalhou a música do rapper Gabriel, O pensador. Para mim a frase mais forte da música é a que diz “o racismo está dentro de você”. Reconhecendo isso, a coisa vai.
O produtor cultural Geraldo Kaunda, do Movimento de Inteligência Negra (MIN), africano, radicado no Brasil, não faz rodeios. O Brasil exporta a idéia falsa de que é um país das igualdades. Mas na praça da realidade açoita negros, à luz do dia – e pior – no silêncio do preconceito velado. Ele mesmo, na entrada de um shopping da Capital, foi abordado com truculência e venceu a sanha do segurança ao começar a falar inglês. “Ele veio correndo em minha direção assim que me viu e eu comecei a falar com ele em inglês e então ele pensou que eu fosse americano e me liberou”. A ignorância mantém o preconceito.
Tem muita gente que não sabe que a África são muitas, países diversos, distintos, cheios de dialetos, além das línguas inglesa, francesa, portuguesa. Geraldo, ao tratar de racismo e mídia, mostrou um vídeo sobre a África que a mídia mostra, sempre morrendo de inanição, sucumbindo ao vírus HIV, em colapso social e a África que desconhecemos – forte, colorida, calorosa, de belas cidades floridas, universidades, o berço da humanidade por fim.
Um outro vídeo, desnudando a crueldade do racismo, silenciou o auditório e feriu feito aço de navalha – pelo menos eu chorei. Uma pesquisa indica que crianças pretas, ainda pequenas, já incorporam a idéia de que são de uma sub-raça. A pesquisa coloca meninas, de 3, 4 anos, diante de duas bonecas, tipo bebê, uma branca e uma preta. O pesquisador pergunta: qual dessas duas bonecas é bonita? Qual dessas duas é inteligente? Diante de perguntas afirmativas, as entrevistadas indicavam, com gordinhas mãozinhas de criança, para a boneca branca, de olhos claros. Mudando as perguntas: qual dessas duas é má? Qual dessas duas bonecas é feia? As entrevistadas apontavam para a preta. E pior: perguntadas com qual delas essas crianças se identificam, eis que vinha a indicação óbvia e frustrante.
O debate tocou sobre um dos assuntos mais espinhosos dentro do movimento negro, que são as cotas. Sobre isso, o jornalista João Negrão, convidado para falar sobre comunicação midiática e identidade, defendeu que a resposta aos resistentes é uma só: historicamente no país os ricos e brancos foram os privilegiados, é hora de dar chance aos negros que ajudaram a construir esse país. Disse ainda sobre experiências que utilizaram cotas e fomentaram o desenvolvimento.
Empregadas ainda são negras nas novelas, bandidos são negros, personagens de má índole idem, as muito sensuais também. O negro na televisão é uma lástima de ser humano. A professora Cândida Soares da Costa, que no debate falou sobre a comunidade negra na TV, alerta para o embranquecimento nas telas ainda vigente. O racismo existe e o assunto deve ser pautado.
Gilberto Gil, Chico César, Malcom X, Zumbi, Chica da Silva, Martin Luther King, Rosa Parks e muitos outros e outras poderiam ser citados para encerrar por aqui, sem que esse assunto tenha fim, por enquanto. Cito o sul africano Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
Matéria original: O racismo que ninguém vê