Cuidado não é tarefa de mulher

Agenda do cuidar precisa ser pautada como política pública; dados do Mapa da Desigualdade ilustram urgência

FONTEFolha de São Paulo | PerifaConnection, por Luize Sampaio e Paola Lima
Perifa Connection/Divulgação

O que é “cuidado” para você? Mulheres negras, sejam cis, trans ou travestis, talvez tenham uma resposta mais complexa.

Existe o tempo de ser cuidada. Para elas, com uma rapidez maior do que para outras pessoas, esse período é atropelado pelo tempo de cuidar do outro, da casa ou de uma comunidade inteira.

Durante a pandemia, a frase “quem cuida de quem cuida?” ecoou nas redes sociais. Hoje, segue sem resposta.

sobrecarga feminina não começou com a crise sanitária, mas certamente foi acentuada por ela, principalmente para mulheres negras.

Líder quilombola do Quilombo do Feital, em Magé, Baixada Fluminense (RJ) – Mayara Donaria/PerifaConnection

Elas são o grupo com mais sobrecargas históricas, tentativas de apagamento e falta de acesso a políticas públicas.

Lidam ao mesmo tempo com o racismo, o machismo e a LGBTQIAP+fobia, enquanto se equilibram em salários muito baixos —menores do que o de homens e mulheres de diferentes raças— e sustentam a maioria dos lares e famílias.

Os dados do novo Mapa da Desigualdade 2023 ilustram a realidade de grandes metrópoles onde há predominância da população feminina e negra, como o Rio de Janeiro.

A publicação lançada nesta semana pela organização Casa Fluminense mostra que mulheres negras recebem os salários mais baixos da metrópole do Rio, enquanto também são as principais moradoras de domicílios irregulares, as maiores vítimas de violência sexual do transporte público e representam a maior parcela em quadros de pobreza ou extrema pobreza.

De acordo com o estudo, um homem branco recebe, em média, R$ 2.713 a mais que uma mulher preta. Mulheres negras são 54,5% das vítimas de violência sexual do transporte público no Rio. Só na Região Metropolitana, existem 1,6 milhão de mulheres negras em situação de pobreza ou extrema pobreza.

MULHERES NEGRAS SEMPRE TRABALHARAM SEM SALÁRIO

A luta pela inserção no mercado de trabalho é uma pauta histórica de parte do movimento feminista, uma parte bem específica.

Existe um viés da emancipação feminina branca e cisgênero que, a partir da discussão sobre a participação das mulheres no mercado, por muitas décadas tentou invisibilizar a questão racial e de identidade de gênero que diferencia essas populações.

O trabalho não remunerado pode ser um problema de todas, mas são as mulheres negras e indígenas que foram sujeitadas ao trabalho escravo no Brasil por cerca de meio século, ininterruptamente.

Essa herança escravocrata e patriarcal segue impedindo que mulheres acessem direitos básicos, inclusive durante a gestação.

A discussão sobre a cadeia produtiva do cuidado contempla desde profissionais remunerados, como enfermeiros, até pessoas que desempenham atividades de cuidado sem terem seu valor socioeconômico reconhecido. Um dos maiores exemplos desse cenário são as mães.

Segundo o Mapa da Desigualdade, uma em cada quatro gestantes da metrópole não realizaram o número mínimo de consultas pré-natal. A Organização Mundial da Saúde prevê a realização de, no mínimo, oito consultas durante a gravidez.

A pesquisa aponta também que, depois do nascimento, quando essa mãe precisa de uma creche, encontra outra ausência de políticas públicas: a falta de vagas.

Em 2021, menos de 25% das crianças do Rio estavam na creche. Isso significa que pelo menos 75% delas ficaram de fora das salas de aula. Além do impacto no desenvolvimento das crianças, a falta de vagas dificulta que mães acessem o mercado de trabalho.

LIDERANÇAS SOCIAIS CUIDAM DE COMUNIDADES INTEIRAS

Uma outra dimensão do cuidado não remunerado é o desempenhado por lideranças sociais trans e travestis que, além de terem que lidar com seus próprios desafios em um país recordista em mortes da sua população, também buscam se alinhar enquanto comunidade e se fortalecer coletivamente.

São lideranças como Shirley Maria, 47, que coordena a Casa Dulce Seixas, a única casa de acolhimento LGBTQIAP+ da Baixada Fluminense.

Em um país em que a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, Shirley escolheu não só tentar sobreviver, mas também acolher, proteger e reintegrar jovens LGBTQIA+ de todo o estado.

Faltam dados para contar essa história, falta interesse público de enxergar o peso dessas mulheres para a gestação e continuidade da vida.

A agenda do cuidado escancara uma faceta muito antiga do nosso país: as políticas públicas não são feitas para as mulheres, e nem contemplam as tecnologias e os corres que elas produzem.

Para a elaboração do Mapa da Desigualdade, firmamos alguns compromissos. O primeiro deles era analisar os dados a partir das justiças de raça, gênero, econômica e climática.

O segundo, buscar formas de interseccionalizar eixos como saúde, educação, emprego e violência com essas justiças.

A Casa Fluminense analisou em 23 bases de dados governamentais e empresariais, além dos que foram pedidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), para a produção da publicação.

De bases federais a institutos de pesquisas privados, nenhuma delas trazia dados especificados de marcadores sociais para pessoas trans, travestis ou não-binárias. Nenhum.

Esse apagamento impede a visibilização de todos os grupos que compõem a sociedade, prejudicando seu acesso a políticas públicas eficazes.

A sobrecarga de responsabilidades dessas pessoas mostra que a agenda do cuidado precisa ser pautada como política pública com urgência.

Afinal, estamos falando de pessoas que se equilibram em jornadas de trabalho triplas ou quádruplas, cuidando dos familiares, da casa e de comunidades inteiras.

É trabalhar para sobreviver, cuidar para ter pelo que viver e se coletivizar para ter com quem e como viver. Se não cuidarmos de quem cuida, não existirá futuro nenhum —nem bom, nem ruim.

-+=
Sair da versão mobile