Curiosidade sobre como vivem pobres alimenta turismo nas favelas

Espetacularização das comunidades constrói zoológicos humanos contemporâneos

FONTEPerifaConnection, por Camilla da Apresentação
Ricardo Borges/Folha Press

No início do século 20, a curiosidade sobre como vivem os pobres já instigava a elite vitoriana, quando os chamados cidadãos de bem visitavam áreas marcadas pela desigualdade.

A prática foi definida como “slumming” pelo dicionário Oxford em 1884. Sem tradução em português, o termo se refere à visitação às áreas pobres das cidades, o que poderia acontecer por filantropia ou curiosidade de se conhecer a miséria do outro. Hoje, a mesma ação pode ser chamada de “turismo em favela“.

A partir dos anos 1990, o termo periferia passou a significar pura e simplesmente pobreza brasileira, palavra acompanhada por um conjunto de estereótipos. Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, amplificou o debate sobre a visita a favelas enquanto destino turístico.

Com o advento de manifestações culturais de valorização e ressignificação das comunidades segregadas, o que antes era visto com temor, receio e distanciamento passou a gerar curiosidade naqueles que assistiam de longe ao retrato desses espaços. Mais do que isso, passou a ser visto como possível objeto de lucro para o governo.

Nesse espaço fetichizado, onde todos querem ver, mas poucos desejam viver, existe, de um lado, o ser “exótico”. Do outro, os corajosos o suficiente para ver os males da pobreza, mas que podem ir embora dali quando quiserem.

No período entre a Copa do Mundo e as Olimpíadas sediadas no Brasil, o Favela Tour, no Vidigal, se consolidou com uma rápida expansão, que começou com a abertura de albergues, bares e restaurantes num curto espaço de tempo.

Nesse contexto, os megaeventos esportivos surgem como uma estratégia do governo para alcançar prestígio internacional, divulgada como revitalização urbana e interesse pelo bem-estar da favela.

Durante os debates promovidos no Vidigal (Fala Vidigal! e 1° Congresso de Turismo de Base Comunitária da Rocinha), parte da população da comunidade declarou a inutilidade de algumas políticas públicas feitas no lugar, e chamaram de obras para “gringo ver”.

Exemplo são os teleféricos construídos pelo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Os moradores relatam que foram construídos única e exclusivamente para os turistas, já que não têm paradas pela comunidade e é cobrada uma alta taxa para o uso, que não permite sacolas em seu interior.

Atualmente o teleférico do Alemão está fora de operação. O equipamento parou de funcionar em 2016, quando entrou em reforma, e ainda não foi religado.

Se de um lado defensores do turismo em favela relatam a ampliação de vagas de emprego a partir da abertura dos empreendimentos, de outro, mulheres do Vidigal reclamam que as novas vagas de emprego são ocupadas por gente de fora da favela.

Além disso, ao notarem que a comunidade antiga está sendo substituída por estrangeiros e pela classe média, os moradores descrevem um processo de gentrificação e mudança das características culturais do lugar onde vivem.

Sendo assim, para atender e suprir todos os fetiches criados pela mídia, as favelas são bombardeadas por uma realidade inventada, com a implementação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) para controlar os espaços e os indivíduos ali inseridos.

As fragilidades e controvérsias do turismo na favela se escancaram quando percebemos as recorrentes negligências aos problemas na comunidade, escondidas por ações que maquiam a ausência de políticas públicas efetivas.

Nesse sentido, não questionamos a ressignificação dos territórios que um dia foram marginalizados, mas denunciamos a perpetuação do racismo e a exploração, disfarçados de ciência e evolução social.

Ainda no Rio de Janeiro, essas práticas de observação se tornaram populares com os chamados zoológicos humanos, hoje colocados sob um passado encoberto.

O imperador do Brasil Dom Pedro 2° inaugurou em 1882 uma exposição no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Na ocasião, foram trazidos e exibidos sete indígenas não-tupis, chamados genericamente de “botocudos” pelos colonizadores.

Essas explorações eram apresentadas com discursos de avanço social, alegando que permitiriam a observação de seres “exóticos” e “incivilizados” para a construção de uma análise “científica”.

Financiadas pela cobrança de ingressos por quem tivesse curiosidade atiçada, jaulas eram preenchidas com pessoas africanas e indígenas, então assemelhadas a animais em zoológicos.

Esse fenômeno contribuiu para a construção do outro colonial, espetacularizando populações “selvagens”, transformando-as em mercadoria e representando a milenar prática racista que percebemos no turismo em favela de hoje.

Enquanto os verdadeiros atingidos pelas políticas de reestruturação e integração social nas favelas não estiverem no centro dos debates e planejamento, o que hoje chamam de turismo continuará sendo uma estratégia de exploração para lucrar em face da população preta e pobre, que continua sofrendo com um projeto colonial de abandono.


Camilla da Apresentação

Conhecida como Preta Letrada, é pesquisadora, escritora e comunicadora. Escreve sobre a diáspora africana, buscando o resgate do passado, propagação do presente e construção de futuros possíveis para o povo preto. Graduanda em Direito pela Uneb (Universidade do Estado da Bahia), busca transformar conhecimento em ferramenta de acesso.

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