Dandara, símbolo de força da mulher negra, tem a vida narrada em livro crítico ao racismo e machismo

Cercada de mistérios, Dandara participava da resistência do Quilombo dos Palmares. Ilustrações: Aline Valek/Divulgação

“As lendas de Dandara” é assinado pela escritora e cordelista cearense Jarid Arraes

Por: Larissa Lins, do Diário Pernambucano

Todos os anos, no Dia da Consciência Negra – criado em 2003 e instituído nacionalmente, por lei, em 2011 – a figura de Zumbi dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695, é resgatada. A de sua companheira, Dandara, porém, segue envolta em mistérios. Há poucos registros historiográficos que comprovem a existência dela, que teria morrido um ano antes de Zumbi, se jogando de abismo para não se entregar às forças militares que dominaram o quilombo.

Conhecedora das técnicas da capoeira, Dandara teria lutado junto com os negros e liderado as estratégias de administração e defesa do Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência africana, para onde fugiram negros durante várias décadas do período colonial. Neste ano, apesar dos registros escassos em torno da heroína, a cordelista e escritora cearense Jarid Arraes decidiu transformar Dandara em livro, ilustrado pela paulistana Aline Valek.

Em As lendas de Dandara (Edição independente, R$ 35), Jarid aproveita o gancho da luta contra o racismo e encoraja, ainda, o empoderamento feminino. A obra, produzida durante um mês, foi lançada em julho passado e mistura dados históricos e ficção. Em dez contos próximos da literatura fantástica, com passagens de fundo sobrenatural, a história da guerreira quilombola é desvendada do nascimento à morte.

Dandara teria morrido um ano antes de Zumbi. Ilustração: Aline Valek/Divulgação
Dandara teria morrido um ano antes de Zumbi. Ilustração: Aline Valek/Divulgação

“Decidi escrever sobre Dandara quando publiquei um texto falando dela há um ano, em novembro de 2014, e recebi comentários que afirmavam que ela não era nada além de uma lenda. Pensei: se ela é uma lenda, então preciso escrever essas lendas, pois nem isso temos a seu respeito. Temos pouco material sobre ela, alguns controversos que sugerem que ela de fato não existiu. Tudo o que pesquisei tive que procurar bastante por conta própria, pois a escola e a mídia não falam de lideranças negras femininas”, diz Jarid Arraes.

Injustiças sociais comuns no século 17 vêm à tona, como o tráfico humano, a escravidão, o preconceito racial e a opressão de classes. Para a autora, toda mulher negra da atualidade tem muito de Dandara, já que as lutas contra o racismo e contra o machismo continuam atuais. “Quer seja como lenda ou como real líder quilombola, Dandara continua a inspirar coragem e continua a fortalecer a luta das pessoas negras no Brasil, então nesse sentido ela é absolutamente real”, conclui a escritora. Até o fim deste ano, ela lança dez títulos novos em formato de literatura de cordel, incluindo biografias de mulheres negras históricas.

ENTREVISTA: Jarid Arraes, autora de As lendas de Dandara

Jarid Arraes é feminista e já tem outros projetos encaminhados. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

Os contos são baseados em fatos históricos (reais). Mas algumas passagens são imaginadas? Como fez esse levantamento, essa pesquisa para contextualizar os contos no tempo-espaço real, daquela época?
O livro é de ficção, mas baseado nas ações e fatos sobre o Quilombo dos Palmares e Zumbi dos Palmares. O que fiz foi inserir Dandara nessas situações, exercendo a liderança, lutando e se relacionando com Zumbi. Para pesquisar, usei tanto livros didáticos e materiais escolares quanto trabalhos acadêmicos que falam sobre o quilombo. Também tive a ajuda de um babalorixá, que me auxiliou com a representação da espiritualidade de matriz africana, pois no livro há a presença dos orixás, como forma de valorização das religiões afro brasileiras. Então, há trechos que são baseados em situações que o Quilombo dos Palmares vivia, mas também há trechos fantasiosos e bastante imaginativos. Até mesmo mágicos.

A existência de Dandara é cercada de controvérsias. Por que? E para você, qual a versão verdadeira da trajetória dela?
Alguns pesquisadores afirmam que Dandara é um mito, uma espécie de junção de várias líderes negras e quilombolas, como Tereza de Benguela e Luísa Mahin. Outros afirmam que ela existiu, mas que os dados são escassos. Acho que, se não há registros confiáveis sobre ela, isso se deve ao machismo e ao racismo da nossa sociedade, herança de séculos de escravidão – algo que acabou há pouco tempo, se pararmos para analisar a linha do tempo da história do Brasil. Na minha opinião, o fato de Dandara ser contada como liderança, como parte de Palmares, já é algo muito representativo e importante, ainda que sua existência seja cercada de contradições.

Quanto tempo levou para escrever os contos? Quando o livro foi lançado? Qual o preço/editora? Onde pode ser encontrado?
Escrevi o livro em cerca de 1 mês, dedicando atenção total e diária. Foi algo bem intenso. Foi lançado em Julho desse ano de 2015, na Casa de Lua. É uma publicação independente, por isso só pode ser comprado pelo site www.aslendasdedandara.com.br  em versão física e digital. Ele tem 10 ilustrações feitas pela Aline Valek.

Na semana da consciência negra, qual a importância, em linhas gerais, de difundir a imagem de uma guerreira negra, protagonista da própria história?
A maior importância é a da representatividade. Porque assim crianças e jovens negros tem acesso a uma personagem com a qual podem se identificar. E isso é importante para a autoestima e para o pertencimento coletivo tanto quanto para se combater o racismo, pois todas as pessoas ficam sabendo de um lado da história que não é contado. Muitos de nós aprendemos que a população negra se resignava a escravidão e não lutava, mas essa é uma mentira que precisa ser desmascarada. O povo negro sempre lutou e resistiu. Dandara, Zumbi, Tereza de Benguela, entre outras e outros, são provas disso.

O livro reforça lutas contra o racismo e o machismo. Ilustração: Aline Valek/Divulgação

O que falta para que os negros sejam, enfim, livres? O que falta, na sua opinião, para desconstruir o racismo, ainda tão presente na sociedade?
A sociedade brasileira precisa admitir o seu racismo, precisa reconhecer as consequências da escravidão até os dias de hoje e precisa se movimentar para combater essas consequências. Sem que o racismo seja reconhecido, não há como combate-lo. As pessoas precisam parar de repetir clichés sobre igualdade e procurar aonde essa igualdade não está sendo efetivamente real. Sem que isso seja feito, o racismo continuará sendo perpetuado. E o racismo gera mortes, sofrimentos reais, resultados terríveis. Evidências, dados, estatísticas não faltam. E também é preciso que a história afrobrasileira seja contada, que seja valorizada, que as pessoas conheçam esses fatos ainda escondidos – assim . rompemos mentiras racistas contadas sobre as pessoas negras.

Alguma mulher real, contemporânea, te ajudou a se inspirar para construir a personagem Dandara?
Para criar a . personagem Dandara do livro, me inspirei nas mulheres negras que lutam todos os dias contra o racismo e o machismo e são verdadeiras protagonistas de um país inteiro, com seu trabalho, força e coragem. Acho que todas nós temos muito de Dandara.

Quem são suas heroínas, pessoalmente?
Minha mãe é minha maior heroína. Mas além dela, cito mulheres como Sueli Carneiro, Lelia Gonzalez, Tereza de Benguela e até as mais jovens como a Malala. São mulheres diversas que transformam o mundo e abrem caminhos novos por onde podemos andar.

Você, como mulher, como escritora, já sofreu algum preconceito?
O racismo e o machismo fazem parte da minha história. Desde os deboches contra o cabelo, até a violência sexual, acho que tenho muito em comum com muitas mulheres que experienciam a discriminação em suas mais variadas formas. No caso da literatura, a pior parte é que nem sempre escrever algo de qualidade é suficiente para obter um espaço e reconhecimento, pois alguns temas e algumas pessoas nem sempre são bem vindos nas editoras e nos eventos literários.   Ainda temos muito o que discutir sobre racismo e machismo no meio literário.

Temas como tráfico humano e escravidão, típicos da época de Dandara, continuam atuais – infelizmente. Como você vê a contribuição de obras engajadas socialmente, para combater esse tipo de mazela?

Acho que a escrita tem um importante papel em promover conscientização e em proporcionar uma experiência de imersão em que os leitores se coloquem no lugar dos personagens e possam compreender as dores e a gravidade de questões de violação de direitos e discriminação. Toda literatura tem impacto social, mas é importante pensar em que tipo de impacto está sendo causado. Uma obra pode naturalizar o racismo ou pode apresenta-lo de uma forma crítica, por exemplo. Eu escolho tentar romper preconceitos porque acredito na responsabilidade social que tenho. Algo que na verdade todos temos, mas precisamos reconhecer.

E quanto ao feminismo, na posição de autora de obra protagonizada por mulher negra e guerreira, percebe que é um tema em crescente debate? Sente que o livro tem encontrado eco por esse viés?
Acho que o livro tem encontrado mais eco pelo vies do feminismo negro e do debate sobre a história afrobrasileira. Infelizmente,  por mais que tenha se debatido mais sobre as mulheres e a literatura, as mulheres que encontram mais escuta e reconhecimento ainda são mulheres brancas, de classe média ou alta, heterossexuais. Ainda é preciso remexer muito no que significa ser mulher e  em quais mulheres têm conquistado espaço no mercado literário para entendermos melhor essas questões. É de fundamental importância que o feminismo sempre tenha atenção para as questões raciais e vice versa, pois uma não pode caminhar sem a outra. Caso contrário, muitas mulheres continuam esquecidas.

E quanto às Dandaras da atualidade, você conhece algumas? Que conselho lhes daria? Algum elogio? Alguma advertência?
Toda mulher negra tem muito de Dandara. Acho que o segredo da coragem e da força está na colaboração coletiva, no reconhecimento das outras como parte inseparável de si mesma, pois juntas nós chegamos muito mais longe.

>> ASSISTA
No vídeo, Jarid narra alguns trechos do livro, enquanto os traços de Aline Valek ganham vida no booktrailer. Confira:

SERVIÇO
As lendas de Dandara

Edição independente
Versão impressa: R$ 35
Versão digital: R$ 12

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