De George Floyd a ataques racistas no Brasil, o contexto do ‘carnaval preto’ na Sapucaí

FONTEPor Gustava Cunha e Rafael Galdo, do Extra
Abre-alas. Artistas e intelectuais negros que desfilarão no Salgueiro: escola levará 170 ativistas para a Avenida, por onde passarão também outros enredos que miram o racismo estrutural Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Transformada em terreiro, em quilombo, a Sapucaí volta a ser iluminada daqui a dez dias para o que vem sendo chamado de o carnaval preto. Não que as escolas de samba não tenham sempre sido terreno da cultura afro-brasileira. Mas, como há muito não se via, serão desfiles predominantemente de temáticas negras, presentes em oito das 12 agremiações do Grupo Especial e em nove das 15 da Série Ouro. E os sambistas acreditam que não é mera coincidência: é como um grito que se solta em tempos de episódios racistas, no Brasil e no exterior, e ataques a políticas de promoção de igualdade social e racial. A resposta vem em tom de enredos de exaltação à cultura e a personalidades negras. Mas sem deixar de pôr o dedo na ferida, lembrando nos sambas, por exemplo, as balas de fuzil que matam jovens negros.

Essa é uma das referências que vai cantar a Beija-Flor, que convidou para seu desfile Yago Corrêa de Souza, rapaz negro de 21 anos preso injustamente ao sair de casa para comprar pão, em fevereiro, na Favela do Jacarezinho. Viviam-se as incertezas de maio de 2020, e a escola já tinha uma proposta de enredo ligada ao desequilíbrio da natureza que se discutia naqueles primeiros meses da pandemia da Covid-19. Mas a morte de George Floyd, homem negro, por um policial branco nos Estados Unidos, desataria os protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Enquanto que, por aqui, não cessavam os crimes de racismo, como os sofridos nas redes pela jornalista Maju Coutinho. A agremiação de Nilópolis reagiu e anunciou outro tema para quando houvesse desfile: “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”.

Ativistas no Salgueiro

Ode à negritude. Profissional do Salgueiro retoca alegoria que exalta a bailarina Mercedes Baptista Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

O Salgueiro, que em sua história já desfilou 18 enredos pretos, não deixou por menos. No mesmo contexto, lançou “Resistência”, cujo símbolo é um punho cerrado. Apenas na vermelho e branco, desfilarão 170 ativistas, artistas e intelectuais negros, da professora Helena Theodoro, que concebeu o enredo, a Rene Silva, fundador do Voz das Comunidades.

— É o carnaval preto, sim, da nossa consciência de que nós construímos este país — afirma Helena Theodoro.

Nei Lopes, cantor, compositor, escritor, advogado e estudioso das culturas africanas, reforça:

— Este é o carnaval da negritude. Já houve anos de temáticas únicas, como no quarto centenário do Rio de Janeiro, em que foi uma obrigação do regulamento. Hoje, não! A questão negra está na pauta mundial, principalmente, após o caso Floyd. O Brasil não poderia ficar fora disso, principalmente num momento em que os conteúdos africanos e de cultura brasileira de modo geral estão sendo relegados e colocados na contramão das atividades governamentais.

Em abordagens explicitamente antirracistas, diz o carnavalesco Alexandre Louzada, da Beija-Flor, encenações lembrarão, inclusive, o assassinato de Floyd e os protestos americanos. No Salgueiro, adianta o também carnavalesco Alex de Souza, um carro alegórico terá a representação de um terreiro de candomblé vandalizado. Em outro, um obelisco com a palavra racismo será derrubado na Avenida, em alusão a monumentos postos abaixo em manifestações mundo afora contra escravocratas.

— Será um momento de darmos uma encarada no racismo estrutural, presente até na nossa festa, na época dos enredos pagos — diz o ativista Luiz Eduardo Negrogun, presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Negro, um dos convidados do Salgueiro, sendo que 150 deles estarão numa ala que será como um protesto, com palavras de ordem e tudo.

Outra ativista que desfilará no Salgueiro, a jornalista americana Kiratiana Freelon frisa que casos semelhantes ao de Floyd ocorrem com frequência no Brasil, e uma resposta nas escolas de samba é mais do que adequada. Já Pâmela Carvalho, historiadora e educadora da ONG Redes da Maré, que também estará no Salgueiro, sintetiza:

— É um carnaval que se reafirma preto, se voltando para as suas comunidades e suas espiritualidades.

Nessa perspectiva, Mocidade e Grande Rio cantarão orixás. Na verde e branco de Padre Miguel, em seu primeiro enredo afro desde 1976, a história a ser contada é a de Oxóssi. Na tricolor de Duque de Caxias, é Exu, com o intuito de desmistificar a divindade que costuma ser demonizada na sociedade. As homenagens ficam por conta da Vila Isabel, que celebra Martinho da Vila como um “griô, a referência”, diz o samba da escola. E também ocorrem na Mangueira, que celebra o compositor Cartola, o intérprete Jamelão e o mestre-sala Delegado. Já a Portela faz um paralelo da árvore sagrada africana baobá com sua própria ancestralidade. E a Paraíso do Tuiuti canta figuras negras da história da humanidade, como Nelson Mandela, a bailarina Mercedes Baptista e Mãe Stella de Oxóssi.

A ialorixá, que lutou pelo respeito ao candomblé, também é enredo da Porto da Pedra, na Série Ouro, que traz ainda temas como o capoeirista Besouro Mangangá, no Império Serrano, ou o Grêmio Recreativo de Arte Negra e a Escola de Samba Quilombo, no Império da Tijuca. Os desfiles de São Paulo tampouco ficam atrás, com enredos como “Basta!”, na Gaviões da Fiel, e “Sankofa”, na Vai-Vai.

— Quando as escolas abordam negritude e políticas antirracistas, estão falando sobre as histórias delas. Os desfiles deste ano têm essa visão. É a nossa pauta de vida e de sobrevivência — diz a cantora Teresa Cristina.

Consciência

O jornalista e escritor Leonardo Bruno também cita esse movimento de as agremiações olharem para si próprias que, para ele, explode este ano, mas que já se percebia em carnavais anteriores, com resultados como o campeonato da Mangueira, em 2019, com o resgate de heróis esquecidos da história, ou o vice-campeonato da Grande Rio, em 2020, com Joãozinho da Gomeia. Outro fator, diz ele, é a chegada de uma nova geração de artistas à folia:

— E aí a gente está falando de carnavalescos, mas também de compositores, dançarinos e ritmistas, de 20, 30 anos, que já vêm com essa consciência contemporânea, da importância de falar de pertencimento, representatividade. São discussões do mundo contemporâneo.

Passam a soar até estranhos, afirma Leonardo Bruno, enredos que não levam em conta com essas características. Ele cita o exemplo da Tuiuti, que para 2021 tinha anunciado um enredo sobre animais. Sem o carnaval daquele ano, a escola trocou o tema, desenvolvido pelo carnavalesco Paulo Barros, que promete aliar sua estética arrojada a seu primeiro enredo afro da carreira. Presidente da escola, Renato Thor, que é negro, explica a mudança:

— A Tuiuti tem uma linha. Não é à toa que é chamada de Quilombo do Samba. E decidimos, juntos, seguir nessa defesa do povo preto.

Um dos poucos carnavalescos negros, André Rodrigues, da Beija-Flor, resume o sentimento de integrar esse momento vivido pelas escolas:

— É fazer diferença na vida das pessoas. Usar o poder de comunicação das escolas de samba para empoderá-las. Mas mostrar o que elas já são e o que podem ser. É contribuir para que não se vejam notícias como as da Fundação Palmares (órgão federal envolvido em polêmicas recentes) e achá-las normais. Para que essas notícias não sejam enxergadas como corriqueiras. Que se entenda sobre o sistema racista que a gente vive — diz ele.

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