Debate da escala 6X1 reflete o trabalho em um país de herança escravista

A deputada Erika Hilton (PSOL-SP) protocolou na Câmara dos Deputados, nesta terça-feira (25), o texto da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que quer colocar fim à escala de trabalho 6×1 – seis dias de trabalho para um de descanso.

Toda essa efervescência política traz consigo a flagrante necessidade de ampliar o período de folga das trabalhadoras e trabalhadores, já tão acarretados com problemas de locomoção e saúde mental. Mas não só isso! Também aponta para a luta por direitos, o exercício da cidadania e a nossa própria percepção sobre o trabalho num país de herança escravista.

A sociedade brasileira, erguida sobre a escravidão, ou seja, uma das formas mais violentas de trabalho já experimentadas pelo Ocidente capitalista, carrega consigo alguns aspectos que convém destacar nessa conversa.

A elite econômica e política colonial e imperial do Brasil expressou, por vezes, uma verdadeira ojeriza ao trabalho.

Desde pelo menos 1651, legislações portuguesas procuravam obstar quaisquer intenções de ascensão social por parte daqueles sobre quem pairasse a menor suspeita de viver de trabalhos manuais.

Estes poderiam ser barrados por terem o que se chamava à época de “defeitos mecânicos”.

Esta estratégia procurava não só reservar os melhores lugares sociais para patrões abastados, como visavam circunscrever as pessoas pobres em posições sociais menos privilegiadas e evitar a mobilidade de pessoas escravizadas e seus descendentes, já que para alçar algumas posições da sociedade portuguesa e brasileira se fazia uma investigação sobre parte dos ancestrais do pretendente.

O conhecido “estatuto de limpeza de sangue”, utilizado pela monarquia lusitana para excluir pessoas com sangue judeu, muçulmano, indígena ou africano, também flertava com a ideia de impureza sanguínea pelo contato destes últimos com o trabalho.

Em certa medida, o catolicismo, religião oficial do Brasil desde a colonização até 1889, reforçou este traço ao longo da experiência colonial brasileira, na medida que encarava o trabalho como um castigo.

Afinal de contas, quando expulsos do Paraíso, Adão e Eva, Deus teria dito a Adão que este tiraria da terra “com trabalhos penosos” o próprio “sustento todos os dias de tua vida” (Gn.3, 17).

Visto como punição, a elite econômica brasileira nunca olhou o trabalho com bons olhos, tanto que o legava aos inúmeros escravizados que contava para lavar, passar, transportar, carpir, construir, pintar, etc.

Quando a pauta do fim do tráfico da escravidão passou a ser aventada ainda na década de 1820 até a década de 1850 e, depois, quando o tema da abolição da escravidão emergiu com força na cena pública a partir do final da década de 1860, um dos argumentos mais recorrentes retumbados pelos escravocratas era o de que o fim do regime devastaria a economia brasileira. Argumento hoje muito utilizado por aqueles que querem a continuidade da escala seis por um.

A República, a Lei da vadiagem e a obrigação de trabalhar

Foi com a justificativa de disciplinarização da força de trabalho que o “combate à vadiagem” adentrou no código penal de 1890.

O artigo 399 desse corpo de leis advertia para a pena de encontrar trabalho em 15 dias aplicada aquelas pessoas que não tinham emprego ou moradia fixa, prazo esse que raramente era respeitado, fazendo que fossem apreendidas e obrigadas a trabalhar nas denominadas instituições industriais disciplinares.

O código de 1890 foi promulgado praticamente junto do advento da República. E isso não tem nada de coincidência.

Afinal, vale lembrar que desde a 1ª legislação do Brasil independente, de 1830, vincula-se punição ao trabalho.

A alteração da ordem escravista para a liberdade incide diretamente sobre a impossibilidade da vida em liberdade a partir dos termos definidos por aqueles que haviam vivido a escravidão.

A sociedade do pós-abolição define que a única possibilidade de vida é a de trabalhador, ou seja, saímos do trabalho forçado para o mundo do trabalho livre apenas em tese, pois as pessoas seguem obrigadas a trabalhar sob condições precárias.

Assim, a mesma sociedade capitalista que fazia uso da mão de obra escravizada construiu, então, estratégias para seguir utilizando o trabalho forçado, mantendo e levando ao limite as condições exaustivas de trabalho.

O trabalho que dignifica é o mesmo que degrada

Cada vez mais o trabalho tem sido valorizado sobretudo por aqueles que vivem do trabalho alheio.

A expressão valorativa de “sangue azul” faz referência exatamente às pessoas tão brancas, tão brancas, que não se expunham ao trabalho, quanto mais ao manual e sob o sol, de tal modo que suas veias demonstravam-se azuis, denotando sua riqueza por não precisarem do esforço pessoal.

Por isso que se utilizava pó de arroz sobre a pele (ainda hoje evidente em filmes e novelas de época) para conferir ares de riqueza construída pelo trabalho dos outros – no Brasil, por escravizados e trabalhadores dependentes.

Quando populares se referem a algo conquistado a muito custo, se fala que se trabalhou “de sol a sol”, porque é exatamente em circunstâncias difíceis que a classe trabalhadora alcança pequenas vitórias.

Burnout, alcoolismo, insônia, depressão, ansiedade, desmotivação e improdutividade são algumas das consequências de cargas exaustivas de trabalho. Não é à toa que muitos dos deputados (que trabalham geralmente três dias da semana em seus gabinetes com ar condicionado e todas as regalias) que estão contra o fim da escala 6 x 1, têm altos índices de faltas ao trabalho.

Não se faz questão de mudar a realidade porque há um senso perverso de naturalização da precariedade do trabalho no país.

Em 1925, o direito a férias remuneradas tornou-se lei no Brasil; em 1934, a jornada de trabalho das brasileiras e dos brasileiros foi fixada em 8 horas diárias e 48 horas semanais, no máximo.

Somente em 1962 houve a conquista trabalhista do direito ao 13º salário. Todos estes avanços que beneficiam até hoje milhões de trabalhadoras e trabalhadores foram arduamente conquistados por meio de mobilizações variadas, passando por negociações, protestos e greves.

Em todas estas ocasiões de ganhos para a classe trabalhadora, sempre houve quem se levantasse contra, acusando os trabalhadores de más condutas, alegando prejuízos à economia do país, prevendo a quebra das rendas públicas, prenunciando endividamentos, fechamentos de empresas e toda a sorte de intempéries.

Como diria o velho samba “E o mundo não se acabou” (1938), do santamarense Assis Valente, “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”, mas em nenhum desses casos, como já assegura o nome da música, o discurso se concretizou.

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