Debora Diniz: ‘A criminalização do aborto mata, persegue e não reconhece a capacidade de escolha das mulheres’

FONTECelina | O Globo, por Leda Antunes
Debora Diniz (Foto: Arquivo Pessoal)

O aborto não saiu do debate público desde que o caso da menina do Espírito Santo, grávida aos 10 anos de idade após ser estuprada por um tio, veio à tona no mês passado. A pressão sofrida pela criança para manter a gravidez, mesmo tendo o direito legal de interrompê-la, e as cenas de extremistas religiosos em frente ao hospital onde ela seria atendida a chamando de assassina geraram revolta.

Pouco tempo depois, a mobilização se voltou para a uma portaria editada pelo Ministério da Saúde que dificultava o acesso ao aborto legal em caso de estupro ao obrigar os profissionais de saúde a notificarem à polícia ao acolher mulheres vítimas de violência sexual e a informarem a gestante sobre a possibilidade de visualização do feto por meio de ultrassonografia.

A medida foi imediatamente repudiada por uma série de especialistas em direitos reprodutivos e representantes do movimento de mulheres, e a pressão para que o governo recuasse fez o tema chegar até o Supremo Tribunal Federal, que avaliaria a constitucionalidade das novas regras na última sexta-feira (25). O julgamento acabou sendo adiado após o governo reeditar, na véspera, o texto da portaria.

Na nova redação, foi retirado o trecho sobre a visualização do feto, mas o ponto mais controverso permaneceu: apesar de retirar a palavra “obrigatoriedade”, a nova portaria ainda diz que os profissionais da saúde “deverão” denunciar o caso à polícia, independentemente da vontade da vítima.

Para a antropóloga Debora Diniz, que há 25 anos faz pesquisas sobre o aborto no Brasil e defende que o tema seja tratado como questão de saúde pública, a portaria foi usada como “termômetro” pelo bolsonarismo.

— É importante assinalar que esse processo serviu como termômetro de até onde o bolsonarismo poderia ir com aquilo que sempre foi sua força motriz, que é a perseguição ao tema do aborto e das questões de gênero — diz a pesquisadora, que desde 2018 vive fora do Brasil em função das ameaças de morte que passou a receber depois de apresentar os dados de sua pesquisa sobre aborto e defender a descriminalização do procedimento em audiência pública no STF, também naquele ano.

Conversei com Debora em duas ocasiões. A primeira em 31 de outubro, por Skype. Ao longo de uma hora, a pesquisadora falou sobre o debate em torno do aborto no Brasil, o movimento de mulheres na América Latina, a atuação de Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e a crise gerada para as mulheres com a pandemia de Covid-19 (a primeira parte da entrevista foi publicada em 4 de setembro).

Para ela, não é possível dissociar a defesa da descriminalização do aborto da luta feminista. A antropóloga vê com bons olhos o fortalecimento da mobilização de mulheres na América Latina, acredita que os movimentos feministas da região vivem um momento de “revigoramento” e acredita que os valores feministas serão fundamentais no futuro pós-pandemia.

— A pandemia nos mostrou que não vivemos sem cuidar, sem assumirmos nossa interdependência. E isso é um valor feminista, porque é um valor sobre a vida das mulheres — afirma a antropóloga.

Na última sexta-feira (25), voltei a falar com Diniz para saber como ela avaliava as últimas mudanças feitas na portaria do Ministério da Saúde e o que pensava sobre a posição de Damares Alves, que durante entrevista ao jornalista Pedro Bial, também na semana passada, defendeu que a menina do Espírito Santo deveria ter mantido a gravidez por mais duas semanas para ser submetida a uma cesárea, ao invés de ter feito o aborto. Confira os principais trechos:

Feminismo e descriminalização do aborto

“Um grande problema de quando você tem cabelo branco é que você se torna quem define algo. Eu não estou aqui para definir o que o feminismo pode ou não fazer e ser. Mas eu defendo um feminismo inclusivo que não use a lei penal contra necessidades de saúde das mulheres. Eu não acredito que possa existir, na diversidade dos feminismos, uma variação sobre uma das questões centrais, como aborto. Podemos elencar outras. Mas me sinto segura sobre aborto e sobre a violência contra as mulheres. Não há um feminismo que não lute contra o fim da violência contra as mulheres e meninas, que naturalize ou que chame dilema, porque as mulheres não conseguem sair ou porque acabam retornando a situações violentas. Eu tenho outras explicações para esses fenômenos ao invés de chamá-los de dilemas. Da mesma forma com o aborto.

A criminalização do aborto mata, persegue e não reconhece um dos valores centrais do feminismo que é a capacidade de as mulheres fazerem suas escolhas sobre quando ser mãe, como ser mãe e como cuidar dos seus filhos, mas também de não usar a lei penal para persegui-las e a força do Estado para transformá-las em criminosas. Eu não posso imaginar nenhum feminismo na sua pluralidade que não reconheça o direito de cidadania e dignidade das mulheres. Eu não queria jamais que fosse a minha cabeça branca a dizer ‘é isso que é o feminismo.’ Mas teria muitas dificuldades de reconhecer no tema da violência contra mulher e do aborto qualquer forma de relativismo, porque o dilema é relativizar, é não assumir que há absolutos no feminismo. E eu defendo que sim, há absolutos.”

A discussão sobre o aborto

“A violência contra mulher já não é mais tão relativizada, mas o aborto ainda é porque a narrativa patriarcal ainda é hegemônica para definir as perguntas. Nós íamos a debates em que as pessoas perguntavam quando a vida humana tem início. Eu paro e me pergunto: porque eu preciso responder a essa pergunta, que nem a ciência sabe, para explicar porque uma mulher não deve ser presa por aborto? Eu estou tentando olhar o real e determinar que perguntas importam para prender, perseguir e matar mulheres. É uma pergunta filosófica e metafísica? Ou é uma pergunta sobre dignidade, cidadania e equidade? Nós ainda não fomos capazes de reescrever as perguntas que importam para a cena pública.”

A luta feminista na América Latina

“Há um movimento em toda América Latina, mas iniciado na Argentina, que é o ‘Ninãs, no Madres’, conectado a outro, que é o ‘Ni Una Menos’. No 8 de agosto de 2018, quando o projeto de legalização do aborto foi votado no Congresso, eram mais de um milhão de mulheres nas ruas. Foi uma das cenas mais impressionantes da minha vida. Aqui preciso fazer um parênteses: a Argentina tem o feminismo mais branco da América Latina. Por um lado há uma força na unificação de pautas que não fragmentam o próprio feminismo, como a violência e o próprio aborto. Por outro lado, o feminismo brasileiro, nesse sentido, é muito mais rico, porque assume a sua fragmentação como sua força. Não é a toa que o feminismo negro surge com essa força brutal no Brasil para toda a América Latina.

O que vivemos no Brasil, e na América Latina em geral, é um revigoramento do movimento de mulheres e do movimento feminista como nunca visto antes. Se a América Latina e o Caribe são o laboratório do autoritarismo no mundo, é também onde se forma a grande força de resposta do movimento de mulheres. E a resposta vai vir do feminismo, desse feminismo diverso: no Brasil do feminismo negro, na América Latina andina, de um feminismo indígena; e mesmo do femininismo branco da Argentina. A energia do movimento de mulheres e de movimentos conectados ao movimento feminista nunca esteve tão acesa.”

Nova portaria do Ministério da Saúde

“A última versão da portaria é resultado de uma enorme comoção pública. Eles [os bolsonaristas] estavam tentando ver até onde conseguiriam ir, mas não conseguiram manter aquilo de mostrar o feto para a gestante. Isso mostra que alguma mudou no cenário público no qual eles pensavam que estavam mais confortáveis para avançar em restrições de direitos no caso do aborto legal, mas não conseguiram e, por isso, retrocederam. No entanto, a segunda versão do texto mantém essa sobreposição entre a autoridade policial e os cuidados em saúde, o que é um equívoco. Não estou negando a importância da polícia para proteger, nvestigar e cuidar. Só que ela não tem que ser acionada na porta de entrada do sistema de saúde, num momento em que a mulher está imensamente vulnerável e fragilizada. O que é muito importante assinalar sobre esse processo é que ele serviu como termômetro de até onde o bolsonarismo poderia ir com aquilo que sempre foi sua força motriz, que é a perseguição ao tema do aborto e das questões de gênero. A portaria foi uma resposta ao que não se esperava de tamanha comoção e engajamento político contra o bolsonarismo em torno de uma questão que é considerada politicamente difícil.”

Críticas de Damares Alves ao aborto

“A posição da ministra Damares só mostra qual é a agenda dela e do governo em torno dessa matéria. É preciso lembrar que a ministra Damares, antes de se tornar ministra, foi autora de um processo para impedir uma mulher com câncer, que viria a morrer se mantivesse a gestação, de abortar. O que nós vimos nessas duas situações é uma evidência concreta do que faz a criminalização do aborto. Muitas vezes, as pessoas dizem ‘ah, mas as mulheres não são presas por aborto’, mas a criminalização cria um ambiente de maus tratos e tortura. Uma ministra de Estado sustentar que essa menininha se mantenha grávida para se fazer uma cesária para encaminhar para uma adoção, é ignorar completamente a experiência de violência que essa menininha vivia.”

-+=
Sair da versão mobile