Debret, racismo e o estereótipo de princesas se conectam nas curvas do sexismo

A velocidade da informação que circula nas redes sociais quase não deixa tempo para respirar fundo.  Mas após um dia, o que é eternidade para o universo virtual, consegui reagir e pensar um pouco sobre a conexão temporal entre a polêmica envolvendo a grife Maria Filó; a abertura de uma nova unidade da “Escola de Princesas”; e o desabafo de Michele Obama diante de mais diatribes sexistas de Donald Trump. Essas notícias viralizaram nas redes com mais força, ontem, sexta, 14.

Por Cleidiana Ramos, do Flor de Dendê

Não consigo entender essa teimosa persistência da hostilidade contra a nossa condição de mulheres. E se o sexismo encontra um de seus companheiros inseparáveis, o racismo, chegamos a situações que me levam a concordar com a frase de um dos agente-máquina do filme Matrix: “ A humanidade é o pior vírus que já atacou esse planeta”. Não é possível que uma espécie cause tanto mal aos seus iguais.

A mais comentada e reproduzida notícia surgiu de um post da servidora pública Tâmara Isaac. Ao entrar em uma loja da Maria Filó, no Rio de Janeiro, ela encontrou uma peça enfeitada com cenas de escravidão no Brasil do século XIX . As gravuras são inspiradas nas criações de autoria do francês Jean Baptiste Debret (1768-1848).

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ESTAMPA EM PEÇA QUE A LOJA PROMETEU, PUBLICAMENTE, RECOLHER. FOTO: REPRODUÇÃO| INTERNET

Debret veio ao Brasil em 1816 integrando a Missão Francesa, uma iniciativa de Dom João VI para criar uma academia de formação de artistas no então vice-reino da coroa portuguesa.  Ao retratar o cotidiano das ruas, fazendas e interior das casas-grandes, Debret nos legou a possibilidade de conferir um retrato da violência que é desumanizar alguém como escravo.

Essa gravura, por exemplo,  mostra um dos castigos reservados aos que se insurgiam contra alguma norma do trabalho forçado:

Na peça da  Maria Filó aparece, entre outras, uma gravura que mostra mulheres negras vendendo frutas. Possivelmente, estavam na função de “ganhadeiras” em busca do dinheiro para a sonhada alforria ou, em hipótese menos otimista, tentando garantir a diária para os senhores que não trabalhavam porque consideravam o esforço algo degradante.

Estereótipos

De acordo com relatos de jornais como o Extra, a peça da Maria Filó levou Tâmara Isaac ao expoente da sua indignação já iniciada por um comportamento padrão em lojas do tipo: a invisibilidade. Do tempo em que entrou e localizou a roupa, nenhuma vendedora havia se aproximado. Possivelmente, porque ela não tem a “aparência” de uma potencial consumidora. Mulheres negras são desconsideradas como clientes nestes espaços.

O raciocínio da vendedora segue os padrões que o racismo à brasileira não descansa um dia em perpetuar. A maioria de nós, mulheres negras, não consome os caros produtos da Maria Filó. Isso porque, devido à manutenção da estrutura sustentada pelas cenas retratadas na peça da marca,  continuamos com acesso reduzido à educação. Sem formação adequada não chegamos às  carreiras profissionais bem remuneradas.

As exceções, como possivelmente Tâmara, chegaram ao patamar que lhes permite comprar uma roupa de grife – e todas temos o direito a desejar e consumir o que decidirmos e conseguirmos – à custa da solidariedade de avós, mães e outras mulheres que nos ensinaram a bater o pé e ir para o lugar que quisermos e não aqueles em que o racismo tenta nos aprisionar

Na polêmica que se seguiu ao post com o relato de Tâmara, inclusive na página da marca, conferi a repetição da mais cínica negação do racismo à moda brasileira: “A vida está ficando chata porque esse povo vê racismo em tudo”. Sim. Enxergamos porque ele não nos dá trégua. De tal forma que uma marca de roupas quer justificar a sua derrapada anti-cidadã e agressiva dizendo que não “percebeu o impacto” que isso ia causar. Confiram abaixo:

Como assim, Maria Filó? Uma empresa que trabalha com estética e suas nuances complexas desconsidera a força da imagem? Que ideia, no mínimo estapafúrdia, foi essa de considerar “homenagem” a reprodução de uma estrutura extremamente violenta? Se queriam destacar “Pindorama” como chamaram a coleção (que algum santo guarani nos perdoe) por que um francês e não Portinari, Anita Malfatti ou Di Cavalcanti?

O Brasil continua ignorando seu déficit de desigualdade racial e enquanto isso vamos atrasando nossas chances de tirar diversos segmentos do país da sua condição colonial, principalmente no pensamento.

Rosa-princesa

E se já foi difícil encarar a lambança da grife, quase não acreditei na “Escola de Princesas”, que veio à tona com a notícia da abertura de  uma unidade em São Paulo.  A ideia do projeto, que já existe em Uberlândia e Belo Horizonte,  é ensinar às meninas conteúdos como o descrito abaixo e que podem ser conferidos no site oficial:

“De Princesa a Rainha: Restaurando os valores e os princípios morais do matrimônio; à espera do princípe (como se guardar); ser a “passageira” ou a “eterna”?; educação/orientação sexual”.

A “Escola de Princesas” foi criada por Nathalia de Mesquita, graduada em letras-português/inglês pela Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais e especialista em psicopedagogia; e  Cleber Belato que se apresenta como alguém com larga experiência em administração de empresas e nos ramos de informática, cosméticos e consultoria financeira.

Lendo o que se promete nos cursos fiquei com a impressão que logo teremos exércitos de personagens como os do filme “Mulheres Perfeitas”:

Ainda bem que encontrei a informação sobre a iniciativa do Escritório de Proteção aos Direitos da Infância de Iquique, no norte do Chile. O investimento é numa oficina que ensina às meninas dos 9 aos 15 anos que elas não precisam virar “belas, recatadas e do lar ” para ter sucesso.

Mais um consolo veio do trecho desse discurso inspirador de Michele Obama em combate aos horrores ditos por Donald Trump. Clique aqui para conferir o vídeo.

São reações como as de Tâmara e Michele que nos dão força para seguir lutando e acreditando que podem até tentar, mas não aceitaremos sequer dar um passo atrás.

 

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