Defensorias públicas, racismo e autorresponsabilidade institucional: um olhar para si

FONTEJusttificando, por Clarissa Verena
Clarissa Verena (Arquivo Pessoal)

Delegar responsabilidades, transferir culpas, incapacidade de resolver os próprios conflitos, são atos e consequências muito comuns dentro do agrupamento social que estamos acostumados/as a vivenciar cotidianamente.

Neste contexto, considerando que as instituições, de forma ampla, são mecanismos de ordem social, é quase inevitável que estas estruturas não repliquem os desafios pessoais dos indivíduos que as compõem, pois, em verdade, estas instituições são fiéis reflexos dessa sociedade.

No entanto, ao contrário do que parece, este é um diagnóstico difícil de ser assumido, sobretudo pelas próprias pessoas que integram estas instituições. Daí ser mais fácil recorrer, inicialmente, ao negacionismo, ou até mesmo à própria indiferença, mais conhecida como “neutralidade”. Afinal, se o reconhecimento de nossas próprias questões pessoais já é desafiador, imagina o reconhecimento de traumas e feridas históricas que avançam “intramuros” para os hospitais, empresas, escolas, setores públicos e privados como um todo.

Assim, considerando que é chegado o tempo de transcendermos ao negacionismo e à indiferença social, reconhecer as fragilidades institucionais, sem dúvida, é o primeiro passo a caminho da mudança.

Mas para não ficar tão genérico e utópico, a quais mudanças nos referimos exatamente?

Estamos falando desde o atendimento inicial, no qual um “corpo negro” adentra um espaço institucional para ser atendido de alguma maneira, passando pelo empenho, dedicação e eficiência do atendente/servidor(a) para que sua demanda seja resolvida de forma satisfatória, bem como da adoção de medidas discriminatórias positivas, as chamadas ações afirmativas, como é o exemplo das cotas raciais nos Certames Públicos com o objetivo de trazer mais pessoas negras (pardas e pretas) e outras etnias a estes espaços de poder. São mudanças que, embora imprescindíveis, não foram contempladas em todos os espaços.

Neste sentido, oportuno ressaltar que a manifestação do racismo institucional, seja na esfera pública ou privada, opera muitas vezes mediante negligências, outras vezes por meio de preterição no atendimento, notadamente nos casos de saúde. Outras inúmeras vezes, no tocante à segurança pública, ocorre por meio da perseguição deliberada à população negra, indígena, quilombola e outros povos tradicionais, provocando o encarceramento em massa, resultando assim no genocídio epistêmico, cultural, social e físico destes grupos étnicos.

As Defensorias Públicas de todo Brasil, enquanto instrumentos do regime democrático e porta de acesso à assistência jurídica gratuita à pessoas e grupos vulnerabilizados, possuem uma contribuição relevante no tocante a educação em direitos, e são instituições que podem e devem endossar o enfrentamento ao racismo institucional, começando a olhar dentro das suas próprias estruturas, com um viés critico, a fim de promover em seus ambientes o respeito à diversidade étnico-racial na busca pela efetivação da equidade racial.

Tendo em conta este potencial, em maio de 2021, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, mediante o apoio técnico de sua Comissão de Igualdade Étnico-Racial, realizará o lançamento da primeira Campanha Nacional cujo tema racial será seu enfoque central, a saber, “Racismo se combate em todo lugar: Defensoras e Defensores Públicos pela equidade racial”.

Pela primeira vez na história das Defensorias Públicas, a temática que estrutura a espinha dorsal da sociedade brasileira há séculos será trazida para debate institucional de forma sistematizada.

Com o advento da Campanha Nacional da ANADEP, Defensoras e Defensores públicos, assim como servidoras/es e demais colaboradores deverão pautar, ainda mais, suas atuações em prol da equidade racial dentro do ambiente defensorial.

Se antes o engajamento das Defensorias Públicas se dava de forma mais difusa e pontual, esta atuação nacional buscará trazer uma articulação ainda mais organizada e publicizada acerca da autorresponsabilidade desta instituição tão importante a serviço da população brasileira no que tange ao enfrentamento ao racismo.

Desta forma, o objetivo desta campanha é promover a conscientização de todos que integram e colaboram nas Defensorias Públicas sobre a necessidade de, inicialmente, conhecer seus verdadeiros integrantes, para então formular, fomentar e efetivar políticas públicas voltadas ao enfrentamento do racismo estrutural e institucional, notadamente aos povos indígenas, negros, quilombolas e demais povos tradicionais.

A título de exemplo acerca de medidas provenientes dessa tomada de responsabilização institucional, podemos citar a elaboração dos primeiros censos que algumas Defensorias Públicas (DPE/BA, DPE/PA, DPE/GO e DPE/RJ) já estão promovendo no intuito de melhor conhecer o perfil dos seus integrantes, desde sua composição racial, passando pelo conhecimento do percentual relacionado ao gênero, bem como ao perfil socioeconômico familiar destes membros.

Fazer o entrecruzamento de dados é crucial para finalmente compreendermos que classe informa a raça. Mas que também a raça informa a classe, assim como o gênero informa a classe¹. Dito de outro modo, impera, no Brasil, uma estratificação social que resulta da combinação simultânea de classe, raça e gênero. Nesse cenário, o racismo dificulta e, muitas vezes, impede a mobilização da população negra, sobretudo, as mulheres negras, base de nossa pirâmide social.

Um outro exemplo de movimento de transformação institucional importante que está havendo é justamente a compreensão acerca da necessidade de termos mais pessoas negras nos espaços de poder. Neste caso, a Defensoria Pública tem adotado iniciativas exitosas, por meio da aprovação, por exemplo, de cotas raciais nos Concursos Públicos para os Cargos de Defensor Público destinados à população negra, sendo que, em alguns estados, existe a previsão também de cotas raciais para povos indígenas e quilombolas.

Cabe destacar que esta Campanha Nacional da ANADEP já iniciou o ano com a 5º jornada de capacitação, inaugurando o tema “questões étnicos-raciais: construindo uma Defensoria Pública antirracista” cujo objetivo foi o de discutir práticas antirracistas no âmbito defensorial.

Em tempo, válido mencionar que a referida Campanha também buscará estimular o letramento racial, provocando a necessidade de se pensar a raça tanto para os/as Defensores/as e servidores/as negros/as em seu processo de construção identitária, mas sobretudo também uma provocação aos/as Defensores/as brancos/as para que reflitam sobre sua branquitude e se conscientizem sobre seus privilégios dentro deste espaço de poder, para que o movimento de autorresponsabilidade institucional, de fato, aconteça.

Aliás, como já muito bem pontuou a filósofa e escritora Sueli Carneiro, em entrevista concedida à revista Margem Esquerda nº 27:

“O racismo é um sistema de dominação, exploração e exclusão que exige resistência sistemática dos grupos por ele oprimidos, e a organização politica é essencial para esse enfrentamento”.

A hora é agora!

A tomada da autorresponsabilidade institucional é medida que se impõe no momento, mas, para isso, é preciso coragem para enfrentar os problemas de discriminações raciais internos.

Diante disto, para além de levantarmos bandeiras institucionais, devemos, antes de tudo, afastar as incoerências do sistema dentro do nosso próprio sistema. Afinal, se ingressar na luta antirracista é o que todos almejam, fazer, então, o dever de casa de “olhar para si” parece inadiável.

 

Clarissa Verena é coordenadora da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da ANADEP; Defensora Pública do estado da Bahia

-+=
Sair da versão mobile