“Defrontamo-nos com a feroz urgência do agora” – Luther King é bom para a Humanidade

FONTEPor Ana Flávia, do Conversa de Historiadoras
Dr. Martin Luther King Jr. (Foto: Stephen F. Somerstein/Getty Images)

Na última terça-feira, 4 de abril, celebrou-se e problematizou-se o 50º aniversário do discurso Beyond Vietnam: a time to break silence [Além do Vietnã: um tempo de romper o silêncio], que o reverendo Martin Luther King Jr. proferiu na Riverside Church, próxima ao coração do Harlem, em Nova York, em 1967. Menos lembrado que o I have a dream, proferido durante a Marcha de Washington de 1963, esse discurso, escrito em parceria com o historiador Dr. Vincent Harding, marca o momento em que Luther King se posiciona enfaticamente contra a guerra e se afasta de uma fidelidade nacionalista ingênua.

Ainda que marcando um distanciamento do comunismo, Luther King acusava a guerra de ser “inimiga dos pobres” e defendia uma ação revolucionária pautada na solidariedade entre os povos, suas agendas de luta e o respeito pela Humanidade numa escala global. Conectava, portanto, a luta pelos direitos civis dos negros estadunidenses com esforços do povo vietnamita em defesa de sua independência do domínio francês. Denunciava a retirada de investimentos governamentais para a superação da pobreza interna para financiar a destruição de outros povos no exterior, e a desproporção de jovens negros enviados ao país asiático, quando esses eram desrespeitados como cidadãos enquanto estavam em solo nacional. E ia além. Apontava para o fato de que a ação violenta de seu país obrigava gerações futuras a responder por atrocidades injustificáveis cometidas contra outras nações como Guatemala, Peru, Venezuela, África do Sul, Moçambique, Camboja, Tailândia…

A conjuntura de emergências de lutas contra as desigualdades e injustiças cobrava posicionamentos sérios e responsáveis: “Esta é uma época para as verdadeiras escolhas e não para as falsas. Este é o momento em que as nossas vidas devem ser colocadas em jogo, se a nossa nação quiser sobreviver à própria insensatez. Toda pessoa de convicções humanitárias deve escolher o protesto que melhor convém às suas crenças, mas todos devemos protestar”.

Para além de nos fazer pensar sobre a cilada em que novamente se meteram os EUA − nação composta por grupos populacionais de todo o mundo sub-representados politicamente, mas numericamente representativos para o funcionamento do país −, o discurso de Luther King cai como uma luva não apenas para refletir sobre os significados da recente ação de Trump na Síria e suas medidas e as ameaças contra o México e países islâmicos. Revisitar esse passado serve como um convite a olhar nossas próprias histórias de ontem e de hoje.

A propósito, assistir ao vídeo da palestra de Jair Bolsonaro, deputado pelo Partido Social Cristão (PSC), representante da extrema direita, na sede da Hebraica-Rio, no último dia 3, me fez pensar que as palavras de Luther King seriam boas não apenas para os judeus, como dizia o avô da Keila Grinberg, mas para toda a Humanidade. Durante uma hora, foi dada oportunidade a um bufão fascista falar atrocidades racistas, machistas, sexistas, homofóbicas e elitistas e ainda ser aplaudido calorosamente por seu público seleto num lugar em que isso deveria ser terminantemente inviável.

A gravidade do fato faz com que as reações tenham que ir além do louvável protesto promovido por um grupo de judeus na porta da Hebraica no momento da palestra, registrado no vídeo O ovo da serpente; bem como das ações protocoladas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Frente Favela Brasil, perante a Procuradoria-Geral da República em Brasília e o Ministério Público Federal no Rio. Há uma espécie de obrigação coletiva em defesa da vida a ser respeitada e com urgência. Se há quem se encante pelas atuais faces do totalitarismo, precisamos explicitar os múltiplos rostos das e dos que não abrem mão de desejar uma sociedade livre e de fato democrática. Pensar a esse respeito me remeteu a outros tempos, em que um desejo de solidariedade entre judeus, negros e nordestinos conseguiu algum resultado no Brasil.

Em outubro de 1992, Luiza Erundina, mulher e nordestina, era a prefeita de São Paulo. Diante do aumento do registro de ataques neonazistas a judeus, negros e nordestinos, um grupo de organizações realizou naquele mês o lançamento do Movimento de Entidades Democráticas contra o Ressurgimento do Nazismo e Todas as Formas de Discriminação, na sede da OAB-São Paulo. As cerca de trinta entidades envolvidas eram lideradas pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, a Federação Israelita do Estado de São Paulo e o Centro de Tradições Nordestinas. Numa ação posterior, reunindo cerca de dez mil pessoas no Vale do Anhangabaú, realizou-se um importante ato de repúdio ao racismo e de afirmação das identidades étnico-raciais e religiosas das comunidades agredidas.

Semanas antes daquele lançamento, a Polícia Federal havia prendido um líder de um grupo defensor da supremacia branca, sob a acusação de ele ter participado da invasão à rádio Atual, dedicada à cultura nordestina, deixando gravadas nas paredes frases racistas. Outros casos eram investigados, mas não demorou muito para que novos ataques com a mesma motivação fossem promovidos. O trágico assassinato do jovem negro, de 16 anos, Fabio Henrique Oliveira Santos, espancado até a morte por 30 “carecas” em abril de 1993 teve desfecho irreversível. Afora isso, como noticiou o Djumbay, jornal negro de Pernambuco, na edição de maio de 1993, as mulheres de Geledés passaram a receber na sede do Instituto cartas anônimas ameaçadoras. Uma delas apresentava este conteúdo:

“Aberta a temporada de caça as galinhas de Angola. Pagarão caro pela prisão de nossos líderes, negros malditos. Pensam que os brancos da África são idiotas para cederem o que é deles por direito, pedaços de carne podre ambulante? Sabemos como agem, onde e quando. Por isso parem de nos provocar.”

A articulação antirracista em São Paulo não se intimidou e conquistou a criação da primeira Delegacia de Crimes Raciais do Brasil ainda em 1993, iniciativa replicada em outras localidades, como o Rio de Janeiro no ano seguinte. Certamente esse foi um momento importante de quebra de silêncio e empenho pela criação e o fortalecimento de laços de solidariedade. O Geledés, por exemplo, desde 1991, havia implementado o SOS Racismo, um serviço de assessoria jurídica, cujos dados foram bastante úteis quando da criação da delegacia especial.

(Foto: Geledés)

No entanto, como avaliou Sueli Carneiro, fundadora do próprio Geledés, já em 2001, quando uma nova onda de forte violência racista precisou ser enfrentada: “O sucesso dessas ações nos conduziu ao erro de baixar a vigilância, de nos desarticular e de nos desmobilizar depois de empurrar para sombras os herdeiros de Hitler, ou seja nos esquecemos do ovo da serpente” (Sueli Carneiro. Pelo direito de ser. In: Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2001, p. 43).

Vivemos situação semelhante mais uma vez, e não estamos em meio a uma farsa. Diferentemente dos anos 1990, em que as ações discriminatórias e até mesmo letais poderiam ser circunscritas à ação de jovens ideologicamente confusos aproveitados por lideranças escondidas, agora temos os promotores do ódio abertamente defendendo suas convicções de opressão e massacre de populações negras, indígenas, pobres, mulheres, nordestinos/as, homossexuais, etc., ocupando cadeiras no parlamento, nas igrejas, discursando em espaços de prestígio, que conferem legitimidade ao que dizem.

O que observou Luther King, para os EUA de 1967, nos serve bastante bem cinquenta anos depois: “Não mais poderemos suportar o culto do deus do ódio ou curvar-nos diante do altar da retaliação. Os oceanos da história tornaram-se turbulentos pelas sempre crescentes marés do rancor. A história está abarrotada de naufrágios de nações e indivíduos que seguiram o caminho do ódio autodestrutivo. […] Defrontamo-nos com a feroz urgência do agora”.

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O discurso Beyond Vietnan foi traduzido para o português e publicado em: KING, Martin Luther. Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin Luther King. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2006.

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