Delegacia da mulher referência em SP registra aumento de 77% no número de ocorrências

Unidade é uma das dez que funcionam 24 horas no estado, que em 2019 teve recorde de casos de feminicídio

Por Elisa Martins, do O Globo

Estado de SP teve em 2019 recorde de casos de feminicídio Foto: (Ilustração André Mello / O GLOBO)

“Espero que a polícia consiga pegá-lo, porque quando eu morrer não vai adiantar mais”, diz Ana (nome fictício), de 28 anos, ao sair da 6ª Delegacia de Defesa da Mulher, no bairro de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Seu rosto está inchado, cheio de hematomas, e o olho esquerdo quase não abre, de tão roxo. Os pulsos também estão machucados, assim como os tornozelos. O corpo todo dói.

O ex-marido, conta ela, aproveitou que se encontrariam para um trâmite jurídico e a levou à força para a casa dele. Lá ele a amarrou, espancou e estuprou. Ana é um exemplo extremo da violência contra a mulher, um problema crônico que levou a 6ª DDM a registrar um aumento de quase 77% no total de de boletins de ocorrência de 2018 (3.662) para o ano passado (6.480) — embora a delegacia estivesse, em 2018, em outro local e ainda não funcionasse 24 horas.

As ameaças são as queixas mais frequentes, sobretudo por parte de ex-companheiros, que dizem querer matá-las. Depois vêm lesão corporal e injúria. Feminicídio (caso de homicídio que está relacionados à condição de a vítima ser mulher) também é outro tipo de crime registrado.

— A maioria das vítimas de feminicídio nunca registrou uma denúncia — conta a delegada Juliana Lopes Bussacos, que comanda a 6ª DDM. — Por isso é importante vir até à delegacia, para que a mulher seja acolhida, orientada e veja que há uma saída, que ela pode romper com esse ciclo de violência.

Violência contra a mulher em alta em SP Foto: Editoria de Arte / O GLOBO

Atualmente, há 133 DDMs no estado de São Paulo, dez delas funcionando 24 horas. A 6ª DDM, onde Ana fez a denúncia, é a unidade voltada à mulher com mais movimento na capital paulista. Virou notícia ao receber a denúncia da modelo Najila Trindade contra o jogador Neymar, no ano passado.

Longe dos holofotes, porém, a delegacia é referência para mulheres anônimas na São Paulo recordista de feminicídios: o estado registrou, entre janeiro e novembro do ano passado, 155 casos de feminicídio — os dados de dezembro ainda não foram divulgados. O índice representa um aumento de 14% em relação a todo o ano de 2018, quando foram contabilizados 136 feminicídios. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, com base em registros de boletins de ocorrência.

Na maioria, são crimes cometidos por ex-maridos e companheiros que não aceitam uma separação.

Na DDM de Santo Amaro, cerca de 40 mulheres são atendidas por dia. Muitas buscam uma primeira orientação. O número de BOs fica em torno de 20 diários. A mulher que chega passa por uma triagem, é ouvida e, se for o caso, registra boletim. O dia de maior movimento costuma ser segunda-feira, que é quando chegam as mulheres ameaçadas ou agredidas no final de semana.

— É difícil precisar, entre os números, se houve um aumento de casos ou se houve aumento das mulheres que denunciam. Mas é fato que elas cada vez mais conhecem os seus direitos. Muitas já chegam aqui pedindo medida protetiva (a medida ajuda a manter o agressor longe, e sua distância e duração são determinadas por um juiz) — diz a delegada Juliana.

Mães temem pela segurança dos filhos

A sala de espera da delegacia é onde as histórias e os rostos apreensivos se encontram. Uma conta que teve de sair de casa e deixar tudo para trás, sob o olhar espantado da vizinha de cadeira. Outra diz que o companheiro ameaçava pegar a guarda dos filhos se ela não voltasse para ele. Na sala ao lado, reservada como brinquedoteca, crianças desenham. Muitas das vítimas são mães que temem pela segurança dos filhos.

“Quando ainda existe sentimento é difícil sair. Mas já aconteceu tanta coisa que nem sinto mais nada. Nem medo. Agora vou até o fim.”
CINTIA (NOME FICTÍCIO)
Cabeleireira vítima de agressão

— Ele falou que ia arrancar minha garganta. Que ia atacar onde mais me dói. São meus filhos — conta Karina, de 40 anos, na espera por atendimento.

Ela diz que ficou 15 anos com o ex-marido, com quem teve um casal de filhos. Terminaram há três anos, depois que ele quebrou a promessa de parar de beber e usar drogas. Sem aceitar a separação, ele vai todo dia à casa da ex-mulher, chuta o portão, pede para voltar e faz ameaças.

— Ele já me ameaçou com faca quando estávamos juntos. Ele prometia mudar, dei várias oportunidades. Mas não deu para aguentar mais. E ele não aceita — diz.

Nesta semana, ele ameaçou matá-la. Uma tia, conta Karina, chamou a polícia, e um agente orientou fazer a denúncia em uma DDM:

— Chega uma hora que tem que vir. Se eu morrer, quem vai cuidar dos meus filhos?

Karina esperou algumas horas até ser atendida. Uma oitiva, como são chamadas as escutas de depoimentos, pode levar meia hora ou mais de duas. E a sala não para de encher.

A cabeleireira Cintia (nome fictício), de 38 anos, registrou a segunda denúncia contra o atual companheiro. A primeira foi há cinco anos. Eles se separaram por um tempo, ele prometeu mudar e ela, diz, acreditou. Engravidou, tiveram um bebê, e as agressões voltaram. Mês passado, nas festas de fim de ano, ele a trancou em um quarto com o filho e foi agressivo.

— Quando brigamos e quero dormir na sala, ele não aceita. Me puxa pelo cabelo e arrasta até o quarto, dizendo que tenho que dormir do lado dele — conta.

Cintia aproveitou uma viagem curta do marido e saiu de casa com o bebê. Não quer voltar, e diz que foi à delegacia em busca de uma medida protetiva.

— Quando ainda existe sentimento é difícil sair — conta. — Mas já aconteceu tanta coisa que nem sinto mais nada. Nem medo. Agora vou até o fim.

Casa de acolhimento

Em novembro, foi inaugurada em São Paulo a Casa da Mulher Brasileira, voltada para mulheres vítimas de violência, no Cambuci, região central da cidade.

O espaço concentra atividades do Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça, atendimento psicológico e acolhimento provisório para mulheres sob ameaça grave.

Em seu primeiro mês primeiro de existência, os serviços da casa atenderam mais de 800 mulheres. Um total de 82 pessoas, entre mulheres e crianças, foi abrigado durante 48 horas no alojamento temporário da casa. Ali também funciona uma unidade da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).

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