Democracia racial: mito ou realidade?

Ricardo Stuckert/Agência Brasil

Sem a escravidão a estrutura econômica brasileira não teria

existido. O escravo foi a espinha dorsal da nova economia.

Fazia crescer a riqueza do país, mas pagava com seu suor e

sangue a apropriação de tudo pela aristocracia branca.*

Por Abdias do Nascimento • Versus 16 • novembro de 1977

Genocídio – emprego deliberado de medidas sistemáticas (tais como matar, infringir danos físicos ou mentais, condições de vida insustentáveis, controle da natalidade) visando a atingir a exterminação de uma raça, grupo político ou cultural, ou destruição da língua, religião ou cultura de um grupo.

Webster Third New International Dictionary of English Language, Mass. 1976

O Brasil, como nação, se proclama a única democracia racial do mundo, e grande parte do mundo a vê e respeita como tal.

Mas, um exame de seu desenvolvimento histórico revela a verdadeira natureza de sua estrutura social, cultural e política: é essencialmente racista e vitalmente ameaçadora para os negros.

Através da era da escravidão, de 1530 a 1888, o Brasil levou a cabo uma política de liquidação sistemática dos africanos.

Desde a abolição legal da escravidão, em 1888, até agora, essa política tem sido levada avante por meio de mecanismos bem definidos de opressão, mantendo a supremacia branca isenta de ameaças neste país.

Durante a escravidão, a opressão aos africanos era tão flagrante que mereceu pouca atenção aqui; eram considerados sub-umanos e forçados a viver na imundície, miséria e degradação de seu status social. Isso significa negligência médica e higiênica, desnutrição, sujeição e abuso sexual.

Essa opressão física e econômica resultou na degradação mental e cultural do escravo, como todos estamos familiarizados. Depois da abolição, os senhores, principalmente os possuidores das plantações de café nos estados do Sul, recusaram-se a empregar os negros livres como trabalhadores, dando preferência aos imigrantes europeus brancos.

Assim negavam a seus antigos escravos os elementos mais básicos de subsistência, acusando-os de indolência e de não terem interesse em levar uma vida produtiva.

Eles ignoravam um fator básico: eles próprios haviam transformado o escravo em “pouco mais que uma besta e pouco menos que uma criança”, através da exploração infame, transformando os resultados de sua exploração em argumento contrário a qualquer possibilidade do escravo ser um homem livre.

Desde os tempos da escravidão, o instrumento mais valioso de genocídio físico e espiritual da raça Negra tem sido a estrutura do poder político de branqueamento da população brasileira.

Os testemunhos da orientação, predominantemente racista, são muitos e variados.

Atestam a atitude prevalecente de que a população brasileira era feia e geneticamente inferior por causa da presença do sangue negro, precisando por essa razão “se fortalecer através da junção com os valores superiores da raça européia”.

Essa atitude era endossada pela teoria supostamente científica e sociológica, que fornecia suporte intelectual vital à política da classe dominante.

“O meu argumento é que a futura vitória na luta pela vida entre nós pertencerá aos brancos”. O escritor José Veríssimo anotou: “Como nos asseguram os etnógrafos, e como pode ser confirmado ao primeiro olhar, a mistura de raças está facilitando o prevalecimento da raça superior aqui.

Mais cedo ou mais tarde, irá eliminar a raça negra.

Aqui, isto, obviamente já está acontecendo”.

Estes conceitos racistas também contam com o apoio religioso: mesmo a igreja católica sustentava que os negros sofriam de “sangue infectado”. A natureza gritantemente racista das estruturas políticas do poder não é difícil de discernir; durante a administração de Getúlio Vargas, a 18 de setembro de 1945, através do Decreto-Lei nº 7967, o governo regulamentava a entrada de imigrantes de acordo com “A necessidade de preservar e desenvolver a composição étnica da população – as características mais desejáveis de sua antecedência européia”.

O apoio da subestrutura intelectual e religiosa permitiu à estrutura de poder pôr em prática essa política em relação a quase todos os aspectos da sociedade brasileira.

Vários níveis e estratégias de dominação se desenvolveram na composição cultural da sociedade, sendo uma delas a repressão religiosa.

O imperialismo cultural branco, sem máscaras, num movimento de aparentes trocas de influências, foi rotulado entre os eruditos convencionais de sincretismo religioso. Esta expressão ignora o fato desse termo ser apenas legítimo se tal troca ocorrer numa atmosfera de espontaneidade.

De fato, a cultura afro brasileira esteve submetida a uma imposição flagrantemente violenta de sincretização forçada.

Neste pretensioso conceito de “democracia racial”, apenas um dos elementos raciais tem qualquer direito ou poder: o branco.

Ele controla os meios de disseminação da informação, os conceitos educacionais, as definições e valores.

Outro instrumento mortal neste esquema de imobilização e fossilização dos elementos vitais e dinâmicos da cultura africana é encontrado na sua marginalização como simples folclore: uma forma sutil de etnocídio.

Na verdade, tudo isso acontece com uma aura de subterfúgios a fim de diluir o seu significado e fazê-lo extensivamente superficial.

Os conceitos da Europa ocidental e branca dominam a cultura supostamente ecumênica deste país de negros.

Para esta cultura identificada com o branco, o homem folclorizado é o homem natural, que não tem história, nem projetos ou problemas: tem só sua alienação, sua privação de identidade; sua única identidade é sua alienação.

Uma vez que matéria prima é uma não identidade esperando para tomar forma, pode-se dizer que o folclore negro é a matéria prima que o branco manipula e da qual se beneficia.

O papel do escravo negro foi crucial para os começos da história e economia política em um país fundado, como Brasil, sobre o imperialismo parasitário

Sem a escravidão, a estrutura econômica não poderia ter existido.

O escravo construiu as funções econômicas da nova sociedade, curvando e quebrando sua espinha; seu trabalho foi a espinha dorsal da economia. Alimentava e reunia a riqueza física do país com seu sangue e suor, apenas para ver os lucros de seu trabalho apropriados pela força da aristocracia branca. Nas plantações de açúcar e café, nas minas, nas cidades, o africano era os pés da classe branca dominante, que não se degradava a si próprio com o trabalho. As ocupações primárias da classe branca dominante eram a indolência, o culto da ignorância e do preconceito, e a mais debochada luxúria.

Há uma crença generalizada, pregada pelos promotores e beneficiários da escravidão no Brasil e no resto da América Latina, que, nas colônias espanholas e portuguesas da América Central, do Sul e Caribe, a escravidão era menos dura que nas colônias inglesas, principalmente nos Estados Unidos. Muitos autores tentaram sustentar esse argumento referindo-se ao fato de que havia mais mestiçagem entre espanhóis e portugueses e suas mulheres escravas, do que havia na sociedade de dominação inglesa. Este fato pretende provar o maior respeito pelos africanos como seres humanos por parte dos senhores brancos latino americanos. Historicamente, esta concepção é uma total falsificação. A brutalidade e as crueldades, exibidas pelos proprietários e mercadores de escravos na América Latina, foram tão fantásticas e desumanas como em quaisquer outras encontradas no Novo Mundo. O cruzamento do senhor branco com a mulher africana foi mero resultado da situação colonial que, aqui, era diferente das colônias inglesas nos Estados Unidos. Espanhóis e portugueses vieram para o Novo Mundo para fazer fortuna e voltar à Europa, e por isso deixavam suas famílias em casa, enquanto que os colonizadores ingleses vieram para o Novo Mundo para construir família. O uso sexual da mulher africana, para satisfazer o senhor branco na ausência de sua mulher branca, nada tinha a ver com respeito às vítimas deste estupro enquanto seres humanos

Uma vez que a importação de escravos visava unicamente o lucro, estes estavam subordinados a uma ideologia que os rotulava de subhumanos ou infra humanos e eram relegados a um papel na sociedade que correspondia puramente a sua função na economia de mercado: uma fonte de trabalho. Não havia nenhuma consideração para os africanos como seres humanos com famílias. A proporção de mulheres para homens importados estava próxima de 1:5, e mesmo as poucas mulheres que vinham da África eram impedidas pela força de estabelecer qualquer estrutura familiar estável. Com efeito, a exploração sexual da mulher negra é uma das mais flagrantes ilustrações do caráter libidinoso, indolente, avaro da classe dominante portuguesa. O costume de manter mulheres negras como prostitutas com finalidade de lucro era comum entre estes senhores, não eram só libidinosos, mas também adeptos da mais vulgar cafetinagem.

O Brasil herdou a estrutura de família patriarcal de Portugal; e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, e não só durante a escravidão. Mesmo hoje, a mulher negra, por causa de sua pobreza e falta de status social, é presa fácil e vulnerável da agressão do homem branco. Fato este que foi corajosamente denunciado no manifesto das mulheres negras brasileiras, unidas em um congresso nacional na Associação Brasileira de Imprensa, Rio de Janeiro, 1975.

Esta realidade social é diametralmente oposta ao mito prevalente que promove o desenvolvimento social do Brasil como um processo fácil de integração. Os homens portugueses, de acordo com este mito, não tinham preconceito de raça, ao contrário, sua falta de preconceito lhes permitiu manter uma interação sexual sadia com a mulher negra. Entretanto, um velho dito deste país, tão popular hoje como há um século atrás, desmente este mito, denunciando-o como uma falsa concepção estabelecida pela classe dominante.

O crime sexual da violência, cometido contra a mulher negra pelo macho branco, foi perpetuado através das gerações pelos seus próprios filhos mulatos, que herdaram o precário prestígio de seus pais e continuaram a explorar a mulher negra. Em uma tentativa de aliviar sua própria culpa nesta exploração sexual, a classe dirigente proclamou o mulato como a chave da solução do problema racial: o começo da liquidação da raça negra e o branqueamento da população brasileira. Mas, apesar de qualquer aparente vantagem de status social, a posição do mulato é na realidade equivalente à do negro: o mulato sofre o mesmo desprezo, discriminação e preconceito na sociedade branca.

Este processo de exploração sexual resulta em simples genocídio. Com o aumento da população mulata, a raça negra começou a desaparecer. Esse desaparecimento foi combinado com os maus tratos e abusos da escravidão, que resultaram em uma taxa de mortalidade infantil extremamente alta. Em 1870, no Rio de Janeiro, cidade em que a população escrava era tratada com mais cuidado que em outra parte do Brasil, a mortalidade infantil era 88 por cento, 1,89 por cento maior do que a taxa de natalidade. A facilidade de importação e aquisição de novos escravos significava que a classe dominante perdia pouco tempo, gastava pouco dinheiro e não prestava atenção à saúde e higiene de seus escravos. Em conseqüência, como mostra Thales de Azevedo, em seu livro Democracia Racial – ideologia e realidade, o tratamento dos africanos no Brasil era tão brutal que… “chegado da África – como adulto ou ainda moço – o escravo ao cabo de sete ou oito anos estava inútil para o trabalho”.

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* Trecho da tese apresentada por Abdias do Nascimento no II Festival de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac), em 1977.

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