Denegrir a psicanálise brasileira

O feminismo negro nos fez passar de pedra a telhado

FONTEFolha de São Paulo, por Vera Iaconelli
Vera Iaconelli (Reprodução/Facebook)

Você assistiu a minissérie “Roots”, de 1977, e chorou quando o jovem Kunta Kinte foi capturado por traficantes de negros ou quando teve parte do pé amputado para não fugir? Sentia-se indignado com a violência e arbitrariedade do apartheid na África do Sul, torcendo pela liberação de Mandela?

Nessa época, enquanto o mundo se digladiava entre raças e etnias, nós brasileiros nos orgulhávamos de estarmos juntos, um só povo. Conhecíamos a ditadura, a pobreza, o analfabetismo, a morte por doenças já erradicadas e a falta de saneamento básico, mas tínhamos um consolo: éramos miscigenados e cordiais.

Eis que inventaram de importar dos Estados Unidos essa ideia de que no Brasil também havia racismo, eclipsando nossa maior qualidade. Machistas, tudo bem, mas racistas!?

Nós, psicanalistas brasileiras, líamos Simone de Beauvoir, Luce Irigaray, Karen Horney e Julia Kristeva e nos sentíamos representadas pelo feminismo, pela recusa à primazia do falo e da inveja do pênis. No entanto, fizeram questão de nos apresentar a Sojourner Truth, mulher ex-escravizada, que se levantou em meio a uma palestra do movimento feminista em 1851 para perguntar se ela também não era uma mulher. Com essa cena mítica, o feminismo negro nos fez passar de pedra a telhado.

Caímos na armadilha de ler Angela Davis, Lélia Gonzalez, Maria Lugones, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro… e criou-se o drama que Freud e Lacan bem descreveram, cada um a seu modo. O drama de experimentarmos o desconforto de admitir o que já sabíamos, mas era desagradável demais reconhecer. [Para se aprofundar no tema nunca é demais lembrar da coleção “Pensamento Feminista” organizada por Heloisa Buarque de Holanda (2019), obrigatória.] Soava tão mais palatável seguir apontando o dedo na cara dos machistas.

A partir de então, tivemos que admitir que nós mesmas, cidadãs de bem, embora soframos por sermos mulheres, somos brancas e, portanto, cercadas de privilégios. Que podemos entrar em qualquer loja, pois o segurança não vai nos seguir ou pedir para revistar nossa bolsa. Que jamais seremos algemadas por andar de bicicleta num parque da cidade, nem cogitamos levar um tiro pelas costas voltando do trabalho.

Os pacientes que chegam em nossos consultórios não se recusam a ser atendidos por nós, como muita vezes fazem quando encaminhados para colegas negros/as. E que cursos de psicanálise ministrados por nós são mais procurados do que os ministrados por colegas não brancos —exceto quando o tema é racismo.

Frantz Fanon, no clássico “Pele Negra, Máscaras Brancas” —com belíssimo relançamento da Ubu (2020)— já denunciava formas mais ou menos grotescas de nos mantermos alienados. Oscilamos entre a negação —”não sou racista, namorei um negro”—, a condescendência —”os negros são tão lindos e exóticos!”—, e a autocomiseração —efeito Fiuk, que não passa de “minha culpa, minha máxima culpa”.

Nenhuma delas vai nos tirar da pocilga social na qual nos enfiamos. Tampouco homens constrangidos diante de feministas raivosas nos ajudarão a dar o mínimo passo em direção à equidade de gênero.

Não se trata de ter pena do outro, considero indigno colocar alguém nessa posição —mas não podemos ignorar que somos privilegiadas pela cor. Ou seja, que o direito de todos é restrito a alguns. De minha parte, busco sair da paralisia ajudando a denegrir, enegrecer, a psicanálise brasileira com cotas e ações afirmativas. Busco também não reproduzir violências, racismo e misoginia. Nem sempre consigo.

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