Jean deixa a vida pública em prol da particular. Está certo nisso
por Flávia Oliveira no O Globo
Um militar não tripudiaria do inimigo rendido. Um democrata lamentaria o parlamentar reeleito sucumbindo a ameaças e desistindo da vida pública. Um estadista estenderia ao adversário político esforços para identificar os criminosos e, com isso, ratificar a grandeza e a impessoalidade das instituições democráticas. O presidente do Brasil, eleito com mais de 57 milhões de votos, regozijou-se em post numa rede social, após tornar-se pública a decisão de Jean Wyllys (PSOL) de abrir mão do mandato e deixar o país por tempo indeterminado. A twittosfera entendeu que Jair Bolsonaro debochara do desafeto.
Hora e meia depois, o mandatário informaria que a mensagem dúbia (“Grande dia!”) celebrava os encontros no Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) e os seguidos recordes de alta na Bolsa de Valores. Com ironia ou silêncio, é fato que o presidente não deu importância ao autoexílio de um parlamentar. O episódio macula o regime que ele, capitão reformado e ex-deputado federal, jurou defender ao assumir o Planalto, não faz um mês.
A despedida de Jean Wyllys é uma derrota da democracia brasileira. Ele foi o primeiro parlamentar assumidamente homossexual a escancarar violações e defender na Câmara dos Deputados os direitos de negros, mulheres, gays, lésbicas, travestis e transexuais. Foi em Brasília um representante intransigente de minorias historicamente oprimidas no país que mais mata LGBTs no mundo — o Grupo Gay da Bahia registrou 387 assassinatos e 58 suicídios em 2017. Por três vezes, ganhou o Prêmio Congresso em Foco de melhor deputado. Foi um dos dois brasileiros incluídos pela revista “The Economist” na lista das 50 personalidades de mais destaque na defesa da diversidade do mundo — a outra foi Cida Bento, do Ceert, instituição dedicada à inclusão no mercado de trabalho.
Jean acertou e errou; teve vitórias e derrotas; conquistou aliados e angariou desafetos; sofreu ofensas e se excedeu — cuspiu em plenário no então deputado, hoje presidente. São delícias e dores do mundo político. Jogo jogado. Mas não é normal — nem nunca será — um deputado às vésperas de assumir o terceiro mandato desistir da posição para preservar a própria vida. Wyllys foi vítima de xingamentos, agressões, fake news e ameaças. Desde a execução de Marielle Franco, a vereadora assassinada há dez meses no Rio e cujo crime segue sem solução, andava sob escolta. Processou e venceu ações judiciais. Mas nem a presença de seguranças nem as vitórias nos tribunais restabeleceram a paz.
Ontem, um Jean Wyllys exaurido anunciou à “Folha de S.Paulo” que capitulou do mandato e, temporariamente, do Brasil. Eu o conheci nos anos 1990, quando no alvorecer do Estatuto da Criança e do Adolescente estudamos juntos em Brasília os caminhos para a cobertura jornalística sobre direitos da infância. Acompanhei à distância o Jean professor universário, na Bahia; e vencedor do “Big Brother Brasil 5”, quando se radicou no Rio de Janeiro. Testemunhei sua entrada e seu empenho na política, seu compromisso com os direitos humanos.
Jean deixa a vida pública em prol da particular. Está certo nisso. Há dignidade num ser humano que escolhe preservar a saúde física e mental, prefere envelhecer a se tornar mártir. É revolucionária a perspectiva de um homossexual, negro, nordestino tornar-se ancião no Brasil. Indigno é um país que se pretende democrático negligenciar ameaças e não ser capaz de garantir a integridade física de seus parlamentares.