Depois de muitos esforços de pesquisadores e organizações do movimento negro para recontar a narrativa em torno do 13 de maio, combatendo a falsa ideia de uma abolição motivada pela benevolência da princesa caridosa, aos poucos foram ganhando espaço as evidências do protagonismo dos próprios escravizados em seu processo de libertação.
A cada nova descoberta sobre as revoltas negras e lutas abolicionistas cresce também fatos concretos da violência colonial da escravidão. Enquanto não desenterramos à força essas histórias, estaremos fadados a manter suas estruturas em permanentes violações de direitos e desigualdades raciais.
A recente localização de um antigo cemitério de africanos, no Centro de Salvador, onde repousam (ou deveriam repousar) os corpos de milhares de africanos escravizados, insurgentes e descendentes, é um importante achado arqueológico que faz ecoar um grito silenciado por séculos em meio ao concreto de um estacionamento.
Assim como o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, cuja redescoberta revelou o principal porto de entrada de africanos escravizados nas Américas, o Cemitério da Pupileira, próximo ao Campo da Pólvora, se impõe como marco incontornável da barbárie que sustentou a construção do Brasil.
Estima-se que mais de 100 mil corpos tenham sido sepultados ali, tornando este cemitério um dos maiores acervos de remanescentes humanos de pessoas negras escravizadas das Américas.
Entre os que podem ter tido seus corpos desprezados naquele local, estão líderes da Revolta dos Búzios (1798), da Revolução Pernambucana (1817), da Revolta dos Malês (1835) e de outros movimentos de libertação negra. A localização do antigo cemitério, que funcionou por cerca de 150 anos e cuja desativação ocorreu em 1844, resultou do trabalho da pesquisadora Silvana Olivieri em sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Após um longo processo de esquecimento e apagamento como acontece com boa parte da história negra no Brasil, o cemitério identificado em um mapa do século XVIII e registros documentais, foi localizado dentro de um imóvel pertencente à Santa Casa de Misericórdia, numa área ocupada atualmente por um estacionamento.
Silvana Olivieri e o professor Samuel Vida, coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da UFBA, elaboraram um dossiê e protocolaram pedido de providências ao Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico Nacional).
Após diálogos entre diversos órgãos públicos, organizações negras e instituições religiosas, incluindo do culto aos antepassados (Egunguns), além da intermediação do Ministério Público da Bahia, foi firmado um Termo de Cooperação Técnica entre os pesquisadores e a Santa Casa de Misericórdia. Uma pesquisa arqueológica no terreno que abrigou o cemitério será iniciada sob coordenação da antropóloga Jeanne Dias, especialista em arqueologia urbana.
As escavações arqueológicas no local começam justamente no dia 14 de maio, data na qual, há 190 anos, eram executados os heróis do Levante dos Malês, uma das maiores rebeliões negras do Brasil, liderada por mulçumanos. O início dos trabalhos será precedido por um ato simbólico organizado coletivamente por representantes do candomblé, do cristianismo e do islamismo, tradições religiosas negras que tiveram seus mortos ali sepultados.
A pesquisa pode lançar luz sobre um capítulo significativo da formação do Brasil, evidenciando um lugar de memória traumática produzido pelo colonialismo e pela escravidão.
A escolha da data não é casual. Se o 13 de maio ainda nos lembra uma abolição inacabada e sem reparação, o 14 é o dia seguinte — dia do desamparo, mas também o dia da resistência, da memória viva, da espiritualidade que sobreviveu ao açoite. É uma forma de dizer que a liberdade real não se inscreveu em decretos imperiais, mas nas lutas travadas com sangue, suor e fé por nossos ancestrais. Não por acaso, a mobilização para resgatar o Cemitério dos Africanos vem sendo feita com um profundo respeito às tradições religiosas negras, que historicamente foram desacreditadas ou criminalizadas pelo Estado.
A presença de lideranças da religiosidade negra no processo reafirma que qualquer reparação que se pretenda justa precisa ser também espiritual. Porque o racismo não nos desumaniza apenas economicamente ou materialmente. Houve uma tentativa de nos apagar também no plano simbólico, ritual, existencial. A existência de cemitérios de “pretos novos”, de covas rasas, e terrenos onde corpos negros ainda são descartados confirma esses esforços violentos a apontar os mesmos alvos.
Que essa escavação não seja apenas do solo, mas também da nossa consciência histórica. Desenterrar os nossos mortos, dar nome às ossadas, reverenciar os que tombaram sem direito a luto, é um ato de dignidade. Que o Cemitério dos Africanos se torne, enfim, um monumento à vida, à memória e à luta de um povo que nunca deixou de sonhar com liberdade.