Descolonizar a língua e radicalizar a margem

Uma resenha sobre “Um Exu em Nova York” de Cidinha da Silva

Por Taís Bravo, Do Mulheres que Escrevem

Livro "Um Exu em Nova York", de Cidinha da Silva, em cima de um balção
Foto: Imagem retirada do site Mulheres que Escrevem

Vi Um Exu em Nova York pela primeira vez no evento Sapatão e Ficção. Naquela noite no Missipi Delta Blues Bar, a autora, Cidinha da Silva, participava de um bate-papo com Fernanda Vieira e mediação de Natalia Affonso. Lembro que gostei da conversa, principalmente do comentário crítico de Cidinha sobre uma representatividade rasa. Não queria falar sobre ser uma mulher negra que escreve ou uma mulher lésbica que escreve ou uma mulher que escreve. Queria poder apenas falar sobre o que escreve, livre das expectativas que nos limitam a uma identidade. Não levei o livro para casa, deixei para depois. Saí com duas zines da Palavra Sapata e uma vontade de voltar.

Agora que conheço seus contos, entendo melhor. Um Exu em Nova York é um livro que, em suas 79 páginas, faz barulho e calmaria. Nele encontramos as paisagens de um mundo onde os tempos se sobrepõem. Paisagens como aquele bar e seus arredores, na Gamboa, região central do Rio de Janeiro cercada de tensões, desigualdades, línguas e histórias. Os personagens das paisagens criadas por Cidinha, no entanto, sabem (ao contrário de tantas de nós) conviver com esse tumultos de tempos e linguagens. Por isso, o incômodo com os limites de uma identidade fazem ainda mais sentido.

Como Cecília Floresta pontuou muito bem no podcast da editora Carambaia em um episódio sobre literaturas queers, é preciso que nossa literatura represente um grupo mais diverso de pessoas sem que essa representatividade assuma um rótulo asfixiante. É preciso escrever personagens que respirem, sejam elas lésbicas, sapatões, negras, bissexuais, indígenas, não-brancas, trans. Nos contos de Um Exu em Nova York, encontramos personagens que são mulheres que amam mulheres, personagens negras, personagens periféricas, personagens que são pessoas inteiras com vidas que perpassam diferentes dimensões sociais e afetivas.

Apostando em uma representatividade potente que não se acaba em si mesma, Cidinha da Silva parece nunca errar a mão. Com frases enxutas, inícios instigantes e finais certeiros, sua escrita é uma espécie de captura. Cada conto é como um retrato de uma personagem. Esses retratos podem mostrar eventos pontuais que deixam um rastro de mistério ou acontecimentos definitivos que alteram todos os tempos da história. Há, de modo geral, uma suspensão. As narrativas nos convocam não apenas pelo que contam, mas também pelo que fica de fora da captura. Aqui qualquer concepção positivista da realidade é rasgada. Dividimos as calçadas com os orixás. O inefável se faz de corpo presente. A inteligência vai muito além da racionalidade. E a nossa língua é viva.

A capacidade da escrita de Cidinha de transitar por espaços, línguas e contextos sociais diversos é notável a partir de suas referências: Filhos de Gandhy, Martin Luther King, Oxum, Oya, Natalia Borges Polesso, Audre Lorde, makotas, ebó, exuzilhamento. Essas são algumas das palavras, nomes, expressões que participam de suas mitopoéticas. Mais do que referências, tais termos, acredito, funcionam como uma espécie de filiação. Ao citá-los, Cidinha marca sua filiação a diferentes saberes, experiências e posicionamentos. E mais uma vez, afirma a diversidade de vidas que não cabem em nichos identitários, porque estão abertas a diferentes modos de resistência. Vidas que, uma vez excluídas do que é considerado como universal, acumulam não só experiências de opressão, mas também de potencialidades. Ou seja, vidas que radicalizam o que é estar à margem.

O que Cidinha faz quando escreve é um exercício de reivindicar nossa língua. Em Um Exu em Nova York a língua não é só a linguagem do opressor, mas também daqueles que enfrentaram sua colonização. Durante a leitura, em muitos momentos precisei recorrer ao glossário que se encontra nas últimas páginas do livro. Estranhava os termos, sentia que não compreendia totalmente, que me faltava conhecer e conviver com aquelas palavras. Me deparar com essa ignorância foi uma importante experiência de incômodo. Se tantas vezes fui parar no google pesquisando nomes em francês citados por algum poeta contemporâneo, por que não deveria fazer o mesmo com nomes que participam da minha cultura e até de minha história familiar? O incômodo, então, se tornou uma oportunidade de conviver com o que desconheço. Aberta a essa escuta, entendi que, falando línguas que atravessam os tempos, os contos de Cidinha da Silva nos convidaram a explorar e ocupar a margem, um gesto infinito como a experiência de descolonizar nossos afetos, estruturas e subjetividades.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de ser escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça a iniciativa!

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