Desconstituição da política de cotas raciais em concursos

Nos últimos meses, universidades públicas estaduais da Bahia lançaram concursos para docentes do magistério superior. Surpreendentemente, os editais não aplicaram cotas raciais

FONTEDiplomatique, por Lidyane Maria Ferreira de Souza e Maria do Carmo Rebouças dos Santos
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Nos últimos meses, universidades públicas estaduais da Bahia lançaram concursos para docentes do magistério superior. Surpreendentemente, os editais não aplicaram cotas raciais. Das quatro universidades, UESC e UESB não previram política de cotas raciais. UNEB e UEFS previram, contudo com aplicação das cotas sobre o número de vagas ofertadas por departamento que, por serem em número inferior a três, inviabilizaram a aplicação da lei.

Já seria motivo de surpresa que uma universidade pública brasileira não previsse algum mecanismo de promoção da equidade racial em seus concursos, uma vez que esta é uma demanda já reconhecida e bastante decantada juridicamente. Ela perpassa diversos fundamentos do Estado brasileiro, pois envolve a democratização do acesso aos cargos públicos e uma expressão da materialização da igualdade racial.

É demanda decantada também socialmente, uma vez que a representatividade torna imaginável a ocupação de determinados lugares sociais para membros de grupos excluídos. Sabe-se muito bem que, quanto maiores as exigências de formação, ou quanto mais aparece a cara das e dos candidatos durante o procedimento seletivo, menos pessoas negras são aprovadas.

Nos concursos para o magistério superior, estes dois fatores se combinam de modo perverso, basta contar quantas docentes negras uma pessoa teve durante sua formação universitária. Essa ausência de professoras e professores negros nas universidades, na realidade um eufemismo para impedimento, tem impacto direto na formação acadêmica oferecida: a reprodução do epistemicídio e de um pensamento científico indiferente à persistência da lógica escravocrata e racista que permeia todas as relações sociais no país.

Portanto, a surpresa converte-se em perplexidade quando recordamos que a Bahia é o estado de maior população negra, com movimento negro organizado longevo e atuante, que alcançou a inscrição legal das cotas raciais nos concursos públicos como medida de promoção à equidade racial. Há, no Estado, o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa (Lei nº 13.182/2014) e o Decreto nº 15.353/2014 que preveem a reserva de 30% das vagas dos concursos à população negra. Em termos institucionais, o Estado conta também com uma secretaria específica para essa temática, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.

Uma dessas universidades, a UNEB – que agora está revisando seu edital, após as reivindicações dos movimentos negros – foi pioneira na política de cotas para a graduação. Portanto, a necessidade de promoção da equidade racial no âmbito universitário não é novidade. O que levou, então, a que essas universidades tenham recuado em seu papel histórico na luta antirracista?

A organização do aparato administrativo influencia o sucesso da implementação da política pública

Sabemos que o aprendizado institucional pode se tornar um processo longo, pois as instituições levam tempo para organizar a sua burocracia e atender a novos regramentos. Mas também compreendemos que as instituições aprendem umas com as outras

No caso das cotas raciais em universidades públicas, para estudantes em geral e para docentes em particular, trata-se de aprendizado que começou em 2002 e foi sendo normatizado paulatinamente em âmbito federal e estadual ao longo dos anos. Da mesma forma, nesse período, diversas universidades implementaram políticas de cotas raciais acumulando aprendizado institucional que poderia servir de referência para as universidades públicas estaduais baianas, vide o exemplo da política de cotas raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).[1]

O caso das universidades estaduais da Bahia, até o momento, concretiza o risco contra o qual recentemente alertamos[2]: a política de cotas, a ser aplicada tanto em ingressos quanto em redistribuições, permutas e remoções, fracassará se o arcabouço institucional do serviço público não criar as condições para sustentação da igualdade material pretendida pela lei. Ou, como já disse frei Davi, desse modo, o direito administrativo desconstituirá o direito constitucional.

De forma expedita e exemplar, tendo sido instada por diversos interlocutores dos movimentos negros baianos, a Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa – a primeira e única da espécie no país -, recomendou que as universidades adequem seus editais para uma aplicação eficaz da política de cotas prevista nas normas  estaduais, ou seja, que além de prever a reserva de vagas para pessoas negras, que aplique o piso de 30% sobre o número total de vagas ofertadas em cada edital.

Como se percebe, o aprendizado conta com muitas fontes sociais e institucionais, com movimentos sociais, universidades e inúmeras ações pedagógicas pacientemente exercidas cotidianamente por quem se compromete com o objetivo de uma sociedade mais justa e especificamente nesse caso, com o cumprimento da legislação.

Esse episódio, para além de desvelar uma adesão enviesada das universidades públicas à política afirmativa racial para a carreira docente com uma interpretação da legislação que burla e inviabiliza a aplicação da lei e uma negligência na organização do aparato administrativo para efetivá-la, pode ser oportuno para que as universidades, além de retificarem os editais, institucionalizem, através de seus respectivos Conselhos Universitários, uma política de cotas raciais realmente antirracista.

No Brasil, é preciso ter ciência de que o planejamento e a execução de cada pequeno ato administrativo requerem tanto uma avaliação de seu potencial contribuição para a reprodução do racismo quanto a busca de meios para combatê-lo e para promover o objetivo da equidade racial. Num gesto de teimosa esperança, com Conceição Evaristo, ou porque aprendemos a ler e a escrever para ensinar a nossos camaradas, temos insistido que as instituições podem aprender umas com as outras.

O tempo oportuniza aprendizado, mas também é uma medida severa que posiciona na história as decisões institucionais perante a luta (anti)racista. Esperamos que as universidades baianas não tardem a se reposicionar. E que outras universidades saibam aproveitar o episódio em seu aprendizado de efetivação da política de cotas raciais.


Lidyane Maria Ferreira de Souza é professora adjunta dos cursos de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, Direito e do Programa de Pós-graduação em Ensino e relações étnico-raciais na Universidade Federal do Sul da Bahia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Usos Emancipatórios do Direito UFSB/CNPq

Maria do Carmo Rebouças dos Santos é professora adjunta dos cursos de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, Direito, Gestão Pública e do Programa de Pós-graduação em Ensino e relações étnico-raciais na Universidade Federal do Sul da Bahia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Usos Emancipatórios do Direito UFSB/CNPq e do Grupo de Pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo UFSB/CNPq.

Referências

[1] Para uma visão geral da políticas de cotas para docentes da UFSB, assim como recomendações para a aplicação da política no âmbito das universidades públicas, remetemos ao nosso artigo “Trajetória institucional da implementação da lei n. 12990/2014 em concurso para docentes: o caso da Universidade Federal do Sul da Bahia”, publicado em dezembro de 20121 no Boletim de Análise político-institucional do IPEA, sobre a “Implementação de ações afirmativas para negros e negras no serviço público: desafios e perspectivas” .Está disponível em:  https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_analise_politico/211220_bapi_31_art_13.pdf

[2] Ibid

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