Desde terra brasilis: desiguais

FONTEJustificando, por Edinaldo César Santos Junior
Edinaldo César Santos Junior (Arquivo Pessoal)

Eu, homem de cor, só quero uma coisa:  Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.

Frantz Fanon

A promessa da igualdade entre as pessoas, prevista constitucionalmente, não pode descurar das diferenças que a (sobre)vivência em uma sociedade racializada impõe para as pessoas negras. É por isso que a hermenêutica possível para uma isonomia efetiva é aquela que emancipa esse grupo vulnerabilizado, agindo assertivamente em prol de uma verdadeira equidade.

A princípio, é preciso compreender que a desigualdade racial é fruto de um projeto estatal em relação às pessoas negras no Brasil. Diversos documentos e estudos evidenciam que a sociedade brasileira imperial reestruturou, recombinou e fundou instituições, preparando todo o Estado para perpetuar desigualdades tendo como cerne, e um dos pilares, a racialização.

Portanto, brancos e negros nesse país não são iguais em suas circunstâncias. Nunca fomos. Desde terra brasilis.

A denominada Lei de Terras de 1850, Lei nº 601, que surge exatamente quando o tráfico negreiro passou a ser proibido no Brasil, estabelecia que não seria mais cabível a apropriação de nenhuma terra através do trabalho, tão somente pela compra. Esta circunstância obstava praticamente a possibilidade de que uma pessoa negra ocupasse a condição de proprietário de terras a partir de então. 

No Código Penal de 1830, o negro era considerado coisa, porque objeto de furto, ao tempo que para puni-lo, inclusive com a morte, se tornava sujeito de direito. O negro, a negra, à época, eram considerados sujeitos apenas para o direito penal. 

Houve também, durante o século XIX, o estabelecimento de uma política educacional excludente para a população negra. O Decreto nº 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, previa que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos. O Decreto nº 7031-A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que somente podiam se matricular, no período noturno, pessoas do sexo masculino, maiores de 14 anos, livres ou libertos, saudáveis e vacinados. Irrefutável a exclusão das mulheres e dos escravos.

No final do século XIX, a partir de 1888, a pessoa negra foi deslocada da condição de coisa, semovente, tal qual gado, e logo depois jogada à própria sorte em uma sociedade que precisava justificar a sua inferioridade, garantindo hierarquia social e racial. Nessa toada de racialização da sociedade brasileira, entre o final do século XIX e o início do século XX, são difundidas teorias raciais eugenistas, de cunho biológico, adotadas inclusive constitucionalmente (na Constituição de 1934 há previsão de educação eugenista, que preconizava a pureza racial). Se antes títulos de nobreza eram herdados, a herança era a superioridade genética que garantia o bom cidadão.

O embranquecimento sempre foi desejável pelo Estado. Ao encontro desse desejo, houve o incentivo à imigração europeia. A Lei de Terras também previa um subsídio para que colonos do exterior fossem contratados no país, em detrimento do trabalho das pessoas negras. O Decreto-lei n. 7.967, de 1945 (com vigência até os anos 1980), assinalava um tipo de composição étnica desejável para se entrar no Brasil: a europeia. Havia um propósito de apagar a presença negra no país. Imaginava-se que em cem anos haveria um Brasil branco: buscava-se uma verdadeira Redenção de Cam.

Para além da deliberada vontade eugenista nas áreas da educação e da imigração, no pós-abolição legal se inicia um processo de criminalização de condutas nas quais o sujeito ativo do crime seria, em regra, o negro. Capoeiragem, mendicância e vadiagem são exemplos. 

Desumanizados. Sem terra. Deseducados. Inferiorizados. Criminalizados. Excluídos. 

O mito da democracia racial fez parte dessa arquitetura muito bem trabalhada de exclusão da pessoa negra no Brasil. A cordialidade, afirmada pelo mito, serviu para a manutenção de uma perversa forma de racismo, cujo resultado é a carência de políticas de redistribuição e de reconhecimento de identidade para os pretos e pardos.

Não somos “duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e de experiências diversas”, como queria fazer crer Gilberto Freyre.

Mas quando o mito da democracia racial já não mais se sustenta, a retórica da neutralidade racial (colorblindness) ganha força. “Somos todos humanos”, diriam alguns, “não vejo cor, vejo pessoas”, diriam outros, mas as estatísticas de hoje, por demais conhecidas, descortinam a desigualdade persistente. A pobreza tem cor. O encarceramento tem cor. O analfabetismo tem cor. O Poder tem cor. A carne mais barata do mercado ainda é a carne negra.

É evidente que as desigualdades de ontem refletem vigorosamente na manutenção da população negra brasileira na periferia social. As oportunidades não são negras. Como a construção da desigualdade racial foi outrora um projeto de Estado, a sua desconstrução implicará uma conversão de rumo na sua política, devendo a questão racial ser posicionada no centro da discussão e não mais à margem.

O racismo escolheu o lugar das pessoas negras, que não era o da humanidade. Um viver no não-lugar. Nunca houve nem haverá docilidade na opressão sofrida pelo povo negro e indubitavelmente as mudanças estruturais necessárias não serão obtidas aceitando a generosidade freiriana do opressor: falsa, oportunista e de permanente injustiça. Para Paulo Freire, somente o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar tanto o oprimido quanto o opressor. Freire, em alusão ao martinicano Frantz Fanon, salienta que essa libertação da opressão, deverá “partir dos ‘condenados da terra’, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem”. Alianças serão sempre bem-vindas, entretanto é negra a dor da diferença entre os iguais.

As questões raciais são cabalmente perceptíveis, mas facilmente ignoráveis por quem não vive sob a égide desse marcador da diferença que é o racismo. Não há como alcançar a igualdade sem racializar a brancura, sem pensar a branquitude, que urge ser problematizada, porque atua como signo de superioridade e de opressão.

Definitivamente, toda e qualquer ideia de neutralidade racial deve ser rechaçada. A realidade é que não somos iguais se essa igualdade for anunciada somente para manter esse estado de coisas racista do qual somente parcela privilegiada da sociedade se vê como beneficiária. Assim, o país que ansiamos é aquele que consiga enxergar suas cores e assuma uma inarredável posição antirracista, pavimentando os caminhos de hoje para que tenhamos uma sociedade do amanhã muito melhor do que esse estado de coisas racialmente desiguais do agora.

Edinaldo César Santos Junior é Juiz de Direito em Sergipe, mestre em Direitos Humanos pela USP e coidealizador do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN).

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