Há quem acredite que as dificuldades eleitorais da esquerda residem em uma suposta centralidade da agenda dita identitária. No entanto, há evidências para outra interpretação: as políticas de inclusão dos governos de esquerda, que trouxeram as desigualdades interseccionais para o centro do debate, provocaram a reação dos grupos ‘perdedores’ e mudaram a agenda como efeito colateral.
Políticas que englobam temas como cotas raciais, regulamentação do trabalho doméstico e violência contra mulher ajudaram a consolidar novas identidades políticas, para as quais questões simbólicas se tornaram ainda mais cruciais.
Até 2018, características sociodemográficas pouco diferenciavam petistas e antipetistas. No entanto, estudos recentes de Samuels, Mello e Zucco revelam uma mudança significativa: simpatizantes do PT agora são mais representados entre eleitores de baixa renda, nordestinos e não-brancos, enquanto brancos, protestantes e pessoas mais velhas passaram a ser mais presentes entre os antipetistas.
Os pesquisadores também constataram que eleitores que percebem ganho de status relativo decorrentes de políticas públicas de inclusão tendem a apoiar o PT. Já aqueles que notam perda de status tendem a se opor. Quando grupos dominantes se sentem ameaçados por possível perda de status para grupos historicamente desfavorecidos, surge um sentimento reacionário que passa a sobrevalorizar questões simbólicas e culturais. Não é à toa, por exemplo, que o termo “ideologia de gênero” explodiu após Dilma Rousseff chegar ao poder.
Os desafios eleitorais da esquerda, portanto, não provêm da ênfase em ações simbólicas, mas do fato de que o combate às desigualdades brasileiras, que perpassam raça, gênero e identidades LGBTQIA+, abala estruturas de poder estabelecidas. Nesse contexto, a agenda “identitária” perder força é recuar no enfrentamento às desigualdades. Não me parece que a saída eleitoral da esquerda deva ser essa. Outro caminho há de ser encontrado.
Manoel Galdino – Professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo. É membro do conselho deliberativo do Instituto Não Aceito Corrupção. Foi diretor-executivo da Transparência Brasil