Desnudar a dor para vestir de justiça

FONTEPor Josi Souza*, enviado ao Portal Geledés
(Foto: Adobe /Stock)

O sonho de um dia sem racismo, entre tantas realizações tidas como corriqueiras para corpos nos padrões de aceitabilidade social, inclui o  direito de ir e vir sem os olhos da suspeição nos (per)seguindo nos espaços públicos e privados. Ainda é regra sermos  lidos como usurpadores, ladras, potenciais criminosos, independente do padrão econômico alcançado por pessoas negras. O capitalismo, embora queira e precise do nosso dinheiro, opera em articulação com a opressão racial que nos rebaixa a persona non grata nos templos de consumo. Este paradoxo tem como resultado um tipo de violência em que o medo, o  constrangimento e a raiva atravessam nossos corpos nos deixando vulneráveis e inertes diante daqueles contratados para assegurar a integridade do bem material abrindo feridas em nossa humanidade para atender à colonialidade do poder. 

Só quem tem a pele alvo sabe o que é precisar se cercar de cuidados para sair de casa e conseguir retornar ileso moral e fisicamente. Cuidados estes que vão deste a escolha de roupas que não sejam associadas a desleixo (um  jeans rasgado é peça fashion para quem? E um moletom com capuz?) até evitar acessórios, como bolsas e mochilas grandes. Toda a leitura social terá o marcador de raça como determinante: pele retinta, cabelos crespos ou com dreads acionam com maior recorrência os olhares atentos do estado, via agentes policiais, e nos estabelecimentos privados, dos seguranças que, a despeito de terem, na maioria das vezes, a mesma cor e fenótipos dos suspeitos sob sua vigilância, atuam como cães farejadores ávidos pelo menor sinal de que podem acusar um suposto delito, como eficientes reprodutores do racismo que também os impacta.

Pessoas negras com letramento racial consistente sabem que podem passar por situações de injustiças, sobretudo por reconhece-las nas sutilezas. Por isso, se antecipar à violência racial criando estratégias de denúncia, repúdio e ressarcimento pelos danos morais e emocionais causados todos os dias em todos os lugares alcançados pela avidez dos lucros do capitalismo racista é uma atitude política necessária. Mesmo ações consideradas extremas e arriscadas, como registrar a ação dos racistas através de uma live, por exemplo, ou ferir pudores e tirar a roupa em público, se colocam como atos em defesa da dignidade de um povo e não apenas uma ação individual. É  grito para provar o óbvio: aquele corpo negro está ali na condição de pessoa idônea que não intenciona cometer crime algum. Quer apenas o respeito e a dignidade constitucionais a que toda pessoa tem direito. 

Bancos, como seus detectores e portas giratórias que travam sempre para pretos e pretas, são um destes lugares que nos sujeitam a constrangimentos e estes, apesar de dolorosos, precisam se reverter em enfrentamento do racismo. Nas grandes redes de supermercado, espaços que se tornaram de alto risco à integridade física, sobretudo dos homens pretos, expõem a escalada da violência racial. Em 2020, o Carrefour foi palco de um crime de execução praticado por agentes de segurança contra o cliente João Alberto Silveira Freitas, no Rio Grande do Sul. No ano seguinte, em Salvador, as vítimas foram tio e sobrinho acusados de furto de carne na rede Atakadão Atakarejo. Esta dupla execução chamou a atenção pela colaboração de traficantes que instituíram a pena de morte, após os seguranças do supermercado terem  lhes entregado Bruno e Ian. Já as lojas de departamento com padrão burguês, como a Zara, o número de denúncias do tratamento discriminatório a negros aumentou. Numa das denúncias contra a marca citada, a delegada negra  acusou o gerente de impedir sua entrada. No mesmo ano,2021, um homem negro que  circulava numa outra unidade da Zara em um shopping da capital baiana foi abordado por seguranças e obrigado a abrir sua mochila. 

E o racismo quer nos convencer de que se trata de casos isolados, mal entendidos e outras desculpas que atentam contra a racionalidade e forjam uma opinião pública de  relativização e naturalização das violências ao levantar dúvidas quanto a credibilidade das denúncias.

Quando a professora curitibana Isabel Oliveira apareceu num vídeo vestindo apenas roupa íntima e empurrando um carrinho de compras numa unidade da rede de supermercado Atacadão não foi a dor de quem foi seguida por seguranças sob  suspeita de furto que viralizou. Para muitos juízes da internet, forjados numa educação que naturaliza o racismo, ela era mais uma militante “mimizenta” que buscou chamar a atenção pela via do vitimismo. Mas para quem conhece essa dor na pele, literalmente, aquele foi um ato reivindicatório de uma justiça aguardada há séculos enquanto nossa cidadania é violada nos expondo muito mais que a nudez.

 Para (in)concluir, um questionamento: se nem mesmo tirando a roupa em um supermercado somos vistos como corpos de dor, o que a branquitude, mentora e operadora dessa opressão, tem em pauta para eliminar os males da parceria histórica capitalismo-racismo e nos devolver a paz do direito de transitar, consumir e retornar aos nossos lares vestidos de dignidade, traje tão desejado pelo nosso povo?

A gente segue buscando o diálogo e resolução.


* Joselice Souza é historiadora, professora da educação básica na rede pública ( Sec-BA), Mestra em educação ( PPGE-UEFS), feminista antirracista.

¹ Sobre esta notícia, ver no link https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml

O duplo homicídio em Salvador envolvendo a rede Atakarejo teve cobertura da imprensa local, como mostra o link https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/caso-atakarejo-ordem-para-matar-tio-e-sobrinho-foi-dada-pelo-trafico-diz-delegada/

Gerente da Zara é indiciado por racismo. Ver em https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/10/18/gerente-de-loja-e-indiciado-por-racismo-em-caso-de-delegada-negra-barrada-em-loja-no-ceara.ghtml

Fernandes Junior, natural de Guiné- Bissau reside em Salvador e é graduado em ciências humanas e tem pós graduação em Direitos Humanos. Sobre este caso ver em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/01/07/advogado-de-homem-acusado-de-furtar-mochila-na-zara-diz-que-vai-pedir-indenizacao-de-r-1-milhao-para-desestimular-o-racismo.ghtml


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