Deuses ateus: buscando reconstruir afeto numa sociedade que vê o homem negro como ameaça

FONTEPerifaConnection, por Pâmela Carvalho
Manifestantes protestam em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, contra assassinato de negros - Lucas Tavares-Folhapress

“Deuses nascem todos os dias mesmo
E os melhores têm a pele preta
E são assassinados todos os dias pelos de pele clara
Geralmente usando azul caneta
[…]
Eu tenho muito amor pra dar e um filho pequeno
Diz o que quer de mim
Meu menino é um deus ateu
Pois em algum momento vai duvidar de si”

(Delacruz – Deuses Ateus)

Eu aprendi a amar com um homem preto: o meu pai. E hoje perco noites de sono pensando na desumanização que nossa sociedade imprime em homens pretos. Nosso país não ama homens pretos. O Brasil não é um local seguro para homens pretos. Não é um lugar seguro para pessoas pretas. E por conta disso, hoje eu vou falar sobre contrassenso. Para uma pessoa que foi criada por um homem preto e entende isso como uma expressão de amor, não é fácil compreender uma sociedade que trata os seus iguais como ameaças.

Das 5.000 crianças que morreram de forma violenta no Brasil, em 2019, 75% eram negras, segundo dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ainda de acordo com o levantamento, 99,3% das vítimas fatais de ações policiais no mesmo ano foram homens. Aproximadamente 78% tinham idade entre 15 e 29 anos, com 75,4% destes sendo pretos e pardos. No Rio de Janeiro, a maior parte (86%) dos 1.814 mortos pela polícia também eram negros.

O racismo nos nega muitas coisas, inclusive o direito a termos história e identidade, porém esses números representam vidas únicas com rostos, nomes e sobrenomes. João Pedro Mattos Pinto, morto com apenas 14 anos no dia 18 de maio de 2020, é um destes nomes que entrou para a estatística. Ele foi alvejado por tiros durante uma operação da Polícia Federal em conjunto com a Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). A polícia chegou jogando bombas de gás e atirando na casa do jovem —atingido sua barriga— segundo seus parentes que, impedidos de entrar no helicóptero de resgate, só receberam no dia seguinte notícias sobre seu falecimento e localização de seu corpo.

No dia 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi seguido, espancado e asfixiado até a morte por dois seguranças brancos de uma das unidades do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Antes de morrer, João pediu ajuda e que o deixassem respirar. A morte vestida de “forças de segurança” também tirou o ar e a vida de George Perry Floyd Jr., estrangulado em 25 de maio do mesmo ano em Minneapolis, nos Estados Unidos.

Mal começou o ano de 2021, no dia 4 de janeiro, Marcelo Guimarães, de 38 anos, foi atingido por um disparo de fuzil enquanto pilotava sua moto rumo ao trabalho, após deixar o filho de 5 anos na escolinha de futebol, na Cidade de Deus, no Rio. Deus dá o nome à localidade onde Marcelo vivia e também aqui, nesta coluna, como uma forma alegórica de falar sobre homens e meninos que, por conta do racismo, têm de se equilibrar numa corda bamba entre a vida e a morte.

O ateísmo prevê a descrença em Deus ou em deuses. Logo, o conceito de “deus ateu” é um contrassenso. Diante dos dados apresentados, só é possível falar em contrassenso.

João Pedro, o primeiro nome citado nesta coluna, era um deus ateu. Todo jovem preto que tem sua vida ceifada é um deus ateu. Além da morte física, o racismo mata simbolicamente e faz com que meninos-pretos-deuses duvidem de suas potências. O estado faz com que eles tenham suas trajetórias brutalmente interrompidas.

João Alberto, George Floyd, Marcelo Guimarães e todos os homens pretos, que poderiam ser o meu pai, são também deuses ateus. Todos os dias nasce um deus negro no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo. Todos os dias um “menino deus negro” se torna ateu ao ser vítima de violência simbólica e psicológica. Todos os dias o racismo do estado faz esses deuses se tornarem ateus ao apoiarem ações de segurança pública que se baseiam na transformação de vidas negras em sangue.

Enquanto escrevo esta coluna, há centenas de meninos-deus negros desaparecidos. Dentre eles, Lucas Matheus, Alexandre da Silva e Fernando Henrique de 8, 10 e 11 anos de idade, respectivamente. Os três desapareceram no dia 27 de dezembro em Belford Roxo, no Rio. Não é justo que crianças negras continuem desaparecendo. Não é justo que mães pretas fiquem nas salas de suas casas esperando, sem perspectiva, seus filhos entrarem pela porta. Não é natural que famílias pretas caminhem com a angústia da incerteza e com a certeza do racismo.

Também no rap “Deuses Ateus”, Djonga diz:
“Mano, mostre seu lado frágil
Crie sua filha forte para que entenda que seu corpo, suas regras
Evite fracos de verdade que possam impor mentiras do tipo
Seu pescoço, minhas rédeas.”

O primeiro homem que eu vi chorar foi o meu pai. Os papos mais cabeça que já tive sobre machismo foram com meus irmãos mais novos. Meu caso não é regra. Mas pessoas pretas estão reconstruindo suas noções de amor. Tivemos nossa afetividade estilhaçada pelo racismo. Feridas profundas foram plantadas, e agora nós buscamos cura.

E é aí que está novamente o “calo”. Um dos saberes mais importantes que podemos absorver com as tradições de matrizes africanas é o senso de comunidade. Esse valor é comumente retomado em favelas e periferias a partir da noção de que as construções coletivas são mais potentes e duradouras do que os caminhos individuais. Essa noção se opõe ao individualismo ocidental, e ilumina a coletividade. Mas, para (re)construir uma comunidade negra, é necessário que homens pretos estejam vivos.

É preciso que deuses negros deixem de ser ateus e possam acreditar em si. A política de extermínio de homens negros implementada pela sociedade brasileira ameaça nossa comunidade como um todo. E isto não é coincidência. Não é acidente, é projeto.

 

Pâmela Carvalho
É moradora do Parque União, na Maré, onde coordena o Eixo de Arte, Cultura, Memória e Identidades da Redes da Maré, mestra em educação pela UFRJ, historiadora e pesquisadora ativista dos direitos de populações de favelas

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

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