“Deveríamos falar menos de escravidão e mais sobre racismo “, João Reis, doutor em história

Em entrevista à jornalista Regina de Sá, o doutor em História pela Universidade de Minnesota (EUA) e professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia, João José Reis faz uma reflexão sobre memória da escravidão e persistência do racismo.

Por Cleidiana Ramos Do Mundo Afro

João José Reis faz uma profunda análise sobre a persistência dos impactos da escravidão.

Regina de Sá

Em um documento redigido no dia 24 de outubro de 1985, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) apresentava uma lista de 38 localidades com potencial para serem reconhecidas como Patrimônio da Humanidade. Naquele ano, o Centro Histórico de Salvador, a primeira capital do Brasil (1549-1763), ganharia a atenção global com o título dado pela Unesco. No maior conjunto colonial urbano tombado do País, com cerca de três mil imóveis erguidos entre os séculos 17 e 19, desde o São Bento até Santo Antônio Além do Carmo, está o Pelourinho, um dos mais visitados cartões-postais da cidade. Porém, no coração do polígono do tombamento não se vê nenhum indício de que ali existiu, de fato, um pelourinho, símbolo máximo do poder da Colônia portuguesa que servia para castigar e marcar com açoites terríveis a pele das pessoas. Além disso, o pelourinho “passeou” pela cidade. Por volta do século 16, o primeiro local onde instalaram a coluna de pedra cantaria com argolas foi na Praça Municipal (por decreto, desde 1949 se chama Tomé de Souza). Depois, levaram o “símbolo da Justiça” para o Terreiro de Jesus, mas os gritos dos açoitados incomodavam os padres e quem mais participasse das cerimônias religiosas e, por Provisão Real de D. João V, acabou levado para as Portas de São Bento (próximo à Praça Castro Alves). O derradeiro destino seria o largo das Portas do Carmo, onde hoje é o Pelourinho. O instrumento de castigo seria retirado, definitivamente, em 1835. Em 1857, colocariam no lugar um chafariz, mas não se sabe que fim levou.

No Prospecto de Caldas, um minucioso trabalho cartográfico da Cidade do Salvador – elaborado entre os anos de 1756 e 1758 pelo engenheiro e militar baiano José Antônio Caldas (1725-1782) -, aparece a indicação da pedra nas Portas de São Bento. O pelourinho-instrumento, de fato, existiu no Pelourinho-bairro, daí a importância de se batizar o lugar com este nome. No entanto, se o pelourinho enquanto marco histórico da era do regime escravista fosse pauta mais frequente nas agendas culturais, turísticas, educacionais e, por que não, acadêmicas, não correria o risco de se apagar da memória a existência de um local público para castigo e tortura. Mas não é esta a opinião de João José Reis, doutor em História pela Universidade de Minnesota (EUA) e professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia. Para Reis, autor, entre outros livros, de Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês, os demônios do Pelourinho são exorcizados hoje de uma forma positiva com os tambores do Olodum, por exemplo. Reis defende que este espaço de castigo público poderia ganhar muito mais como local de memória se fosse criado um museu da escravidão e da resistência escrava. O local, apesar do nome, reforça o historiador, em parte descolou sua identidade desse passado, sem que, por outro lado, esse passado esteja encoberto.

Há 30 anos, o Centro Histórico de Salvador foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio da Humanidade. No epicentro desta importante área da cidade, está o Pelourinho, local visitado por turistas de todas as partes do Brasil e do mundo. Ali, pessoas de várias partes do País e do mundo buscam um consumo cultural de massa, que abrange diversão, entretenimento e compras. Para o senhor, o Pelourinho perdeu sua identidade?

 

João José Reis – Não existe identidade fixa, “autêntica”, nem de indivíduos, de grupos ou lugares. O Pelourinho não é diferente. Apesar de voltado para o turismo em muitos aspectos, consegue-se ali observar muita manifestação da cultura popular, inclusive no ramo do entretenimento, o que ainda faz daquele um lugar especial. Acho positivo que os tambores do Olodum exorcizem os demônios locais, fazendo desse espaço de tortura pública – e não apenas de tortura de escravos – um ambiente de expressão da liberdade. Não é só de turismo que vive o Pelourinho, apesar de sua mercantilização.

Por que razão, atualmente, não se encontra nenhum resquício de que, durante um longo período, Salvador possuiu uma coluna de pedra com argolas de metal onde se amarravam escravos e criminosos para açoite e ou escárnio público? Ou seja, por que a área conhecida como Pelourinho deixou de possuir um pelourinho (artefato) como testemunho de um passado em que nossa sociedade submeteu seres humanos a castigos cruéis e ignominiosos?

 JJR – O “artefato” desapareceu muito antes de se ter desenvolvido uma política de memória adequada a uma sociedade mais democrática e inclusiva, que, apesar de tudo, o Brasil vem se tornando, aos trancos e barrancos, é verdade, com avanços e recuos – e, nos dias que correm, mais recuos do que avanços. Desconheço alguma imagem que pudesse servir para, por exemplo, reproduzir a coluna de tortura. E, aliás, não acho que seria o caso de se erguer coisa do tipo no atual largo do Pelourinho porque, como disse, o local, apesar do nome, em parte descolou sua identidade desse passado, sem que, por outro lado, esse passado esteja encoberto. Outras formas de lembrança da violência na era do antigo regime escravista poderiam ser criadas, como, por exemplo, um museu da escravidão e da resistência escrava, ou uma seção temática nos museus afros já existentes. Há quem, no movimento negro e na academia, discuta exatamente isso.

  O senhor julga que há, nessa ausência, uma sutil intenção de nossa sociedade em esconder, ou remeter ao esquecimento, este fato?

  JJR – A Bahia já não precisa esconder essas coisas para que os ricos e poderosos continuem a mandar, a usufruir de seus privilégios e a fechar os olhos às desigualdades sociais e raciais. Estamos numa era de cinismo galopante, por um lado, mas também de alguma conquista no que diz respeito a uma compreensão mais inteira do passado. Não é mais possível negar essa parte inconveniente da história. É perfeitamente possível para o Estado e a sociedade combinarem um repúdio à violência do passado, ao mesmo tempo em que toleram ou até promovem o racismo e a violência contra negros, índios, pobres no presente. Veja você que essa violência e o racismo ocorrem e até crescem paralelamente à obrigatoriedade do estudo da história do negro – que inclui o tráfico e a escravidão – nos currículos escolares (Lei 10.639/03). A juventude negra, na maioria pobre, está sendo massacrada pela violência, inclusive a policial, é o que apontam as estatísticas.

 A questão da preservação do patrimônio não estaria também ligada à memória e ao registro da História? Como as gerações futuras vão poder entender o que, de fato, ocorreu onde hoje se conhece como Pelourinho se não são mais visíveis as marcas da escravidão? 

 JJR – Talvez não seja correto dizer que inexistam marcas materiais da escravidão no Pelourinho, porque ali estão casas e igrejas construídas por escravos, e com os lucros da escravidão no Recôncavo e na cidade; lá estão as antigas senzalas urbanas (as chamadas lojas, subsolos dos sobrados e casas), e como contraponto uma igreja erigida por escravos e libertos para abrigar uma irmandade negra, a do Rosário dos Pretos. Existem santos negros nos altares de outras igrejas (por exemplo, São Benedito na Igreja de São Francisco), a Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada por negros livres e libertos em plena vigência da escravidão etc. Não falta então “patrimônio” preservado para se pensar a escravidão, mas também a negociação e a resistência escravas, que estão consignadas por toda parte. O que precisa é passar adiante essas informações. Entenda: não sou contra o Pelourinho ser lembrado e vinculado à violência escravista, mas não vejo necessidade de se repor ali um poste para significar isso. Tente pensar por outro ângulo. O nome do lugar já constitui um componente imaterial do significado histórico, ele substituiu de maneira forte a materialidade da coisa, mais forte, por exemplo, do que naquelas cidades onde o pelourinho sobreviveu enquanto artefato ou monumento histórico. Não há nessas cidades toda uma área da cidade chamada Pelourinho como temos na Bahia. Isso aqui na Bahia é muito forte. Que se entenda isso, que se aproveite isso numa política de memória. Se essa sociedade quisesse realmente “esquecer” a escravidão, teria mudado o nome daquele espaço há muito tempo. Mas o nome está lá a lembrar do que ali acontecia. É coisa que só se vê na Bahia, e é preciso entender por que é assim.

 Estudos recentes apontam para o esvaziamento do Pelourinho como lugar de moradia de camadas mais pobres. Entre os anos 1980 e 2000, 67% da população residente deixou o Pelourinho, em virtude da forma como a intervenção do Estado atuou na região, com vistas a revitalizá-la, ou “restaurá-la”. O processo, conhecido como “gentrificação”, contribuiu para a regeneração da área e reatribuiu significados a esses marcos de memória da sociedade soteropolitana? Apagar por completo a existência do pelourinho também colaborou para afastar dali os “habitantes indesejáveis” do bairro?

 JJR – O que você chama de “gentrificação” (um anglicismo que se poderia evitar) aconteceu muito depois de desaparecido o poste de castigo. Portanto, uma coisa não levou necessariamente a outra. Nas cidades onde o poste se mantem em pé até hoje, como em algumas cidades mineiras, aconteceu o mesmo fenômeno de “requalificação”, o termo burocrático usado pelo Estado não só no Brasil. Nas chamadas cidades históricas brasileiras, gente com dinheiro compra casas para morar ou para segunda residência, assim como residências se tornam lojinhas e restaurantes para servirem à indústria do turismo. Ou seja, com ou sem o poste, o nosso Pelourinho estava destinado a ser parte do circuito turístico e da especulação imobiliária, e essa especulação é um câncer espalhado por toda a cidade. Num sentido mais amplo, o que ali aconteceu com a população se repetiu, antes e depois, em várias áreas de Salvador fora do chamado Centro Histórico. Comunidades de pescadores, por exemplo, foram arrancadas da orla para a construção de praças, estacionamentos, hotéis, edifícios e condomínios.

Em uma entrevista, o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que deverá lançar em 2019 uma trilogia enfocando o tráfico de escravos no Brasil, afirmou que “a escravidão é um cadáver insepulto, um fantasma que nos assombra até hoje porque nos recusamos a encará-lo”. Simbolicamente falando, é possível que ainda exista um fantasma insepulto no Largo do Pelourinho justamente porque há quem prefira passar uma borracha no nosso passado, selecionando o que deve ou não ser rememorado, e manter apenas o nome como atração turística?

 JJR – Laurentino Gomes poderá escrever sua versão da história da escravidão porque, nos últimos 20, 30 anos, esse é um dos temas mais estudados pela historiografia brasileira, talvez o mais estudado. O número de teses, livros e artigos é enorme e não para de crescer. Depois da publicação do livro de Laurentino, depois da comissão da verdade da escravidão, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o fantasma de que fala aquele autor continuará nos rondando. Já se sabe o suficiente sobre a escravidão para que esse passado passe, mas ele não passará inteiramente enquanto houver o racismo e a desigualdade baseada no perfil racial. É sempre bom que se tenha mais um livro sobre a escravidão, mas já se sabe o suficiente sobre o assunto, e há muito tempo, para inspirar políticas públicas de reparação, as quais, aliás, estão em curso ultimamente, embora muito mais seja necessário nesse aspecto, eu acho. Para lhe ser franco, acho que se devia falar menos de escravidão e mais sobre racismo e desigualdade racial na atualidade. Às vezes escravidão vira ponto de fuga. O racismo tem pernas próprias, tem uma capacidade enorme de se reproduzir em nossa sociedade, e nos dias que correm se reproduz de uma maneira cada vez mais aberta exatamente porque o negro brasileiro deixou de assumir aquele lugar subalterno que lhe tinha sido destinado desde sempre. O avanço da consciência negra e a ocupação negra de espaços antes quase exclusivamente brancos – como a universidade -, por exemplo, hoje explicam o racismo muito mais do que a escravidão.

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