Dezembro vermelho: negros estão entre as principais vítimas do HIV no país

A colunista Isis Vergílio convida a amiga, a artista plástica e ativista Micaela Cyrino, para contar sobre como é viver desde sempre com o HIV e os percalços da população negra portadora do vírus

Por Isis Carolina Vergílio Do Revista Marie Claire

Micaela Cyrino: “Sou mulher negra, vivendo com o HIV desde que nasci” (Foto: Day Rodrigues)

Conheci Mica em 2016, acompanhando um amigo, Flip Couto – ativista no debate sobre a saúde da população negra vivendo com HIV, produtor e idealizador do Coletivo Amem -, a um bate-papo sobre HIV. Num determinado momento da discussão, Mica, muito aborrecida, levantou-se e questionou algumas pessoas que compunham a mesa e falavam a partir de um lugar extremamente privilegiado, ignorando a situação da população negra – os mais afetados pela epidemia de Aids no país.

A observação faz total sentido, como comprova a pesquisa mencionada pela médica Eliana Battaggia Gutierrez, coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids, mostrando que as pessoas de cor preta morrem, em média, três vezes mais do que as brancas (2,3/0,8) em decorrência da Aids. Ainda de acordo com o levantamento, a disparidade também é observada em relação à taxa de detecção do HIV, duas vezes maior nas pessoas de cor preta (18,0 em brancos e 36,4 em pretos). O estudo ressalta também que esses indicadores são piores entre as mulheres do que entre os homens, expressando mais um aspecto da desigualdade de gênero manifestado em outras situações. “A obtenção dessa informação é possível em função da coleta de dados dos usuários nos serviços de saúde”, afirma Eliana.

Voltando a Mica, desde esse encontro, nos tornamos amigas, conversamos sobre afetos, tretas, sobre a vida, mas, acima de tudo sobre os sonhos e as conquistas. Pensando no Dezembro Vermelho, mês dedicado a conscientização em relação aos debates relacionados ao HIV, convidei Mica a contar um pouco de sua história às leitoras de Marie Claire.

Mica nasceu em 1988, período considerado o auge da epidemia de HIV no mundo, infectada via transmissão vertical, de mãe para filha, durante a gestação. Artista plástica e performer, Mica atua também como ativista nos debates relacionados à saúde da população negra vivendo com HIV _além de ser uma pessoa maravilhosa! Fiquei imensamente feliz e honrada pela confiança e com vocês, Micaela Cyrino.

De Micaela Cyrino para Ísis Carolina
Bom, eu sou Micaela Cyrino, tenho 30 anos, canceriana profunda, dramática, com ascendente em escorpião. É muito amor, é muita água, a ancestralidade reflete muito na minha trajetória de vida. Falo também porque, além de tudo, sou uma mulher negra, vivendo com HIV desde que nasci, e sei dos impactos disso diariamente poir, para que as pessoas saibam que eu tenho HIV, preciso contar. Minha pele escura é o que vem primeiro: o racismo é muito mais agressivo do que o HIV, assim como o machismo é muito mais agressivo que o HIV, então, os impactos disso em minha existência são danosos, sabe?! Atualmente, estou entendendo a possibilidade da minha existência.

Um dia, estava dando uma palestra, quando me perguntaram: “Como é viver com HIV?”. Estou aprendendo o que é viver hoje, já que não fui projetada para chegar aos 30 anos, pois nasci com HIV e sempre senti como se tivesse pouco tempo de vida, pois não se sabia muito sobre a epidemia e, portanto, não planejava muito uma projeção de vida e planos futuros. E, aí, que estou viva. 

Tenho refletido todos os dias sobre isso, especialmente após completar 30 anos. De fato, não sei o que é viver sem HIV. É parte de mim, parte da minha existência e eu tomo isso como luta, mudança e transformação. Compartilho minha história e minha vivência por acreditar que pouco se sabe e se fala sobre esse tema, e eu não sei pensar minha vida sem HIV. Minha vida é essa realidade.

Me vejo como uma resposta do Estado quando se pensa em saúde pública para a população negra. Minha mãe morreu em decorrência da Aids. Vivendo esse processo, pude perceber que, em função de uma construção de narrativa, que direcionava e fazia com que a população acreditasse que a epidemia era apenas para um grupo específico, foram desconsiderados e negligenciados outros corpos. Minha mãe só teve ciência de que era portadora do HIV quando já estava muito doente. Morreu em um período muito curto e eu entendo isso como um descaso para com a saúde da população negra, que está morrendo de várias formas.

Quando minha mãe morreu, eu tinha 6 anos,e vivia no terreiro onde minha avó era mãe de santo, mas tenho pouca memória dessa época. Éramos eu e mais três irmãos – o mais novo, recém-nascido a época. Meus dois irmãos mais velhos foram morar com a minha avó paterna e eu e o caçula, David, fomos para um abrigo de crianças portadoras de HIV. Isso ocorreu lá no início da epidemia, em 1994. No abrigo, ficavam algumas mães e seus filhos, e, em outro, um pouquinho mais distante, moravam travestis e pessoas trans. A gente tinha uma realidade bem paralela, de presentes e atividades. Eu fazia muitas coisas fora da escola, muitos passeios, e tinha muitas madrinhas que nem eram brasileiras e escreviam cartas. Era uma princesa e, na adolescência, fui entendendo que a realidade da minha família era outra. Um exemplo era a Páscoa: a gente ganhava uns nove ovos de chocolate no abrigo, e minha tia ensinou que precisávamos guardá-los para dividir com os meus primos. Cedo, entendi que minha família não tinha condições e aprendi a dividir.

Morei no abrigo evangélico até os 18 anos e estive evangélica, acreditando profundamente naqueles ensinamentos, na relação de pecado e culpa, guiada pela educação espiritual que tive a época. Após sair do abrigo, comecei a entender e a me abrir para outras possibilidades. Frequentei o centro espírita, o terreiro e, hoje, depois de tudo, entendo muito que os processos de cura mental passam pela espiritualidade e isso se reflete no corpo.

Já na vida adulta, vivi um momento muito difícil: estava doente, extremamente debilitada fisicamente e com problemas no fígado, vivendo um relacionamento afetivo sorodiscordante (quando uma pessoa vive com  HIV e o outro não) e lutando para que a família dele me aceitasse. Nesse processo, viajei ao Equador numa tentativa de explicar que ‘tudo bem’ viver com HIV.  Fui ao mercado municipal em Quito, à procura de algumas ervas, e nesse processo de construção e busca pela ancestralidade e espiritualidade criei a performance CURA, trabalho que surgiu numa residência artística que participei em 2015.

A performance em si é um banho público com ervas, em especial a arruda, escrevo HIV no meu corpo e me limpo com essa água. É uma reflexão desse corpo que habito, desse corpo negro, positivo e feminino. Em CURA, exponho todo o processo da minha existência, desde criança. O espaço em que ela foi realizada, o Museu de Arte Contemporânea, foi muito importante para gerar um processo artístico dentro de uma residência sobre trabalhos que falavam sobre soropositividade.

Vou comentar rapidamente sobre as estratégias de combate à epidemia. Acho que elas estão voltadas apenas para uma classe específica. Sendo bem honesta, tanto a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), que é a utilização de um medicamento para evitar que uma pessoa que não tem o HIV adquira a infecção quando se expõe ao vírus, quanto a PEP (profilaxia pós-exposição), prescrição de medicamentos antirretrovirais para prevenir a infecção pelo HIV em caso de contato recente com o vírus, são estratégias que não chegam à periferia e a população negra no Brasil.

Sabemos que a questão do genocídio da população negra passa pelo debate da saúde, sendo o grupo mais vulnerável e afetado. Falamos pouco sobre esse contexto social da epidemia: a população negra e periférica é a que mais morre em decorrência da Aids, portanto, precisamos debater a partir desse lugar social urgente. Se somos nós que estamos morrendo porque as tecnologias e estratégias de prevenção não chegam à população mais afetada? Estamos falando de racismo!

Para fechar, esse negócio de pensar o futuro tá sendo uma constante para mim. Sou artista plástica e tenho pensado muito em minha carreira, no que eu quero, sobre as minhas produções. Quero fazer minha exposição individual ano que vem, sabe?! Não tenho conseguido pensar a longo prazo, consigo pensar para o ano que vem e me organizar artisticamente. Estou entendendo que posso me abrir para um afeto, pensar em ter um filho, são coisas que eu to começando a pensar que eu posso! Dá um frio na barriga, pretendo e quero continuar estudando e produzindo, pretendo mergulhar na minha performance e estudar a possibilidade de desenvolver outras coisas. Quero me estudar, me conhecer, me entender.

Me dei conta de que não sei exatamente do que eu gosto, ou o que eu quero, mas penso que estou viva _e essa é a surpresa que ninguém imaginava!

Isis Vergilio e Micaela Cyrino, a Mica (Foto: Arquivo Pessoal)
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