Dia de Combate ao Trabalho Infantil: Brasil tem recursos cortados e dados desatualizados

Membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves denuncia desmonte na área

FONTEBrasil de Fato, por Pedro Stropasolas
66,1% das crianças vítimas de trabalho infantil são pretas ou pardas - Valter Campanato/Agência Brasil

Neste Dia Nacional de Combate ao Trabalho Infantil, o Brasil carece de um dado oficial atualizado que traga o quanto esse cenário foi agravado por conta da pandemia e o aumento vertiginoso da fome, que atinge 33 milhões de pessoas, segundo relatório divulgado esta semana.

Divulgado em 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que existem 1,8 milhão de crianças e adolescentes nesta situação.

Mas o cenário atual deve ser ainda mais crítico. Em meio à uma fase da crise sanitária e econômica, a prática ilegal continua a roubar infâncias, causar e acidentes de trabalho, e a perpetuar o ciclo da pobreza. 

O advogado e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SP), Ariel de Castro Alves, alerta que o desmonte nas estruturas de fiscalização faz do governo federal “algoz dos direitos das crianças e adolescentes”.

Em 2020, ações como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), por exemplo, deixaram de receber verbas federais, o que interrompeu a implementação em estados e municípios.

“Esse governo não tem nenhum compromisso no enfrentamento ao trabalho infantil. Muito pelo contrário, em vários momentos Bolsonaro e seus aliados pregam favoravelmente a exploração do trabalho infantil”, analisa Alves.

“Temos recentemente também medidas provisórias e decretos do governo que cortam vagas de aprendizes nas empresas brasileiras, desobrigam essas contratações”, completa o especialista. 

O advogado alerta que a precarização do mercado de trabalho que atinge hoje milhões de adultos no país, também afetará as crianças e adolescentes, sobretudo, por conta da evasão escolar.

“O trabalhador infantil de hoje vai ser o desempregado de amanhã”, analisa o fundador da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal, da Organização dos Advogados do Brasil (OAB).

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em todo o mundo, 160 milhões de crianças e adolescentes são explorados. E até 2022, a estimativa é que esse número suba para mais de 8,9 milhões. 

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: O que é o trabalho infantil?

O trabalho infantil é aquele trabalho exercido por quem tem menos de 16 anos de idade. A legislação brasileira proíbe que crianças e adolescentes com menos de 16 anos estejam trabalhando. A única exceção é quando estão atuando como aprendizes. Geralmente, atividades com vínculo educacional, como auxiliares de escritório, secretariado, vinculadas a um processo de profissionalização. 

Então, nós temos na constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente, essa proibição do trabalho infantil pra todos com menos de dezesseis anos. E também é proibido o trabalho para aqueles que têm mais de 16 anos e menores de 18 anos, em condições insalubres, que prejudique a saúde e também o desenvolvimento físico e psicológico ou moral dos adolescentes. E atividades também noturnas ou qualquer tipo de atuação que gere periculosidade.

Qual a realidade no país hoje? O número de denúncias aumentou no governo de Jair Bolsonaro (PL)

Nós temos, segundo os números oficiais, 1,7 milhão de crianças e adolescentes em situações de exploração do trabalho infantil. Esse número é de 2019 e não conta a pandemia. Mas nós temos várias pesquisas, inclusive de pesquisadores tanto do Brasil como internacionais que questionam esses dados. 

Existe uma subnotificação. Claro que as famílias não assumem que essas crianças e adolescentes estão em situações de trabalho infantil. Muito menos os seus empregadores que estão explorando o trabalho infantil. Então de fato nós não temos uma transparência, uma publicidade adequada dos dados do trabalho infantil. E o governo Bolsonaro acabou com a atuação dos auditores do trabalho na fiscalização e no combate ao trabalho infantil. Ele acabou com o orçamento para o combate também do trabalho infantil. 

Nós temos pesquisas no Inesp [Instituto Nacional de Estudo e Pesquisa], que é um instituto nacional que faz o acompanhamento dos orçamentos públicos, demonstrando que o governo Bolsonaro cortou praticamente todo o orçamento voltado ao enfrentamento ao trabalho infantil e também de incentivo à aprendizagem para que adolescentes estejam se profissionalizando, se preparando pra uma inclusão adequada no trabalho.

Esse governo não tem nenhum compromisso no enfrentamento ao trabalho infantil. Muito pelo contrário, em vários momentos Bolsonaro e seus aliados pregam favoravelmente a exploração do trabalho infantil. Se hoje nós temos milhões de desempregados adultos no Brasil, eles agora querem ampliar o número de empregados adultos, colocando crianças e adolescentes para que sejam exploradas e não recebam por seus direitos. Então, cada vez mais nós temos uma precarização do mercado de trabalho que atinge os adultos e que o governo quer que atinja também as crianças e adolescentes.

Temos recentemente também medidas provisórias e decretos do governo que cortam vagas de aprendizes nas empresas brasileiras, desobrigam essas contratações. Então, de fato nós temos um governo que é algoz dos direitos das crianças e adolescentes. E a sociedade brasileira, muitas vezes, também tem uma certa conivência com o trabalho infantil, especialmente as classes média e alta. As pessoas não querem que seus filhos trabalhem, mas querem que os filhos dos pobres sejam explorados, e de preferência não tenham direito a estudar, não tenham direito a lazer, a cultura, ao esporte.

Ariel, em relação às crianças e adolescentes que vivem em situação de rua no Brasil, qual o panorama atual?

Na minha experiência, a situação de trabalho infantil, principalmente nas ruas, em faróis, em praças, ela acaba sendo uma porta de entrada para a exploração sexual de crianças adolescentes, e para a exploração no tráfico de drogas, e no envolvimento de atos infracionais e nos crimes.

A criança está lá vendendo bala no farol, logo vem um aliciador e vai oferecer que ela vai ganhar mais se ela for explorada sexualmente, ou vai oferecer que ela vai ganhar mais se ela fazer entrega de drogas, ou furtos e assaltos. Então, o trabalho infantil é muitas vezes a porta de entrada de crianças e adolescentes para a criminalidade.

De fato, nós temos um problema gravíssimo de situação de rua de crianças e adolescentes no Brasil. Não temos pesquisas adequadas e atualizadas. O último número é de 2011. Na época, eu fazia parte do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente e encomendamos uma pesquisa que mostrou que nas cidades com mais de 300 mil habitantes no país, nós tínhamos 24 mil crianças e adolescentes vivendo nas ruas. 

O último censo da população de rua em São Paulo mostra que temos quase 700 crianças em situação de rua. Já os dados da ONG Visão Mundial há quatro anos atrás mostravam quase 90 crianças em situação de rua. A última pesquisa feita pela Secretaria Municipal de Assistência Social de que temos 526 pontos com crianças e adolescentes em situação de rua. Então esses números podem ser altos de crianças e adolescentes nessas situações. 

Tem aquelas que estão, infelizmente, morando efetivamente nas ruas o tempo todo, algumas que estão junto com seus pais, e os últimos dados do Censo mostram o aumento de famílias em situação de rua na cidade de São Paulo, e temos aquelas crianças e adolescentes que passam o dia na rua em situações de trabalho infantil, fora da escola, em situações terríveis de exclusão. E depois voltam para suas casas para garantir também a subsistência dos seus lares, ou passam a semana inteira nas ruas do centro de São Paulo, e no fim de semana voltam para suas casas na periferia ou em cidades da própria grande São Paulo. 

Agora, com a intensificação do frio, nós tememos por situações de hipotermia, por situações graves com relação a saúde e a vida dessas crianças e adolescentes. Não temos ainda programas adequados tanto para abordagem e educação social dessas crianças e adolescentes, quanto para que retomem os seus vínculos familiares, comunitários e escolares.

Sobre as empresas que dominam as cadeias produtivas de commodities agrícolas, principalmente as multinacionais, qual a responsabilidade delas no combate a este crime?

Precisamos ter a responsabilização dessas empresas, inclusive em ações de danos materiais e morais. O Ministério Público do Trabalho no Brasil e a própria justiça do trabalho são bastante atuantes, bastante comprometidos com o enfrentamento trabalho infantil. O Ministério Público do Trabalho em São Paulo, no Brasil todo, tem proposto várias ações civis públicas contra as empresas. 

Mas o que está prejudicando a atuação do Ministério Público do Trabalho é esse desmonte que foi realizado no governo Bolsonaro em relação a fiscalização e o combate ao trabalho infantil. Então, o Ministério Público do Trabalho acaba dependendo de receber denúncias por parte de entidades, por parte de pessoas. Porque nós não temos mais uma ação efetiva sendo realizada nas várias áreas de exploração do trabalho infantil, inclusive dessas empresas terceirizadas ou as vezes grupos até informais que estão explorando o trabalho infantil em prol dessas grande empresas. Precisamos que de fato o governo retome a atuação dos auditores do trabalho, a fiscalização.

Os conselhos tutelares precisam também estar mais atentos a situações de trabalho infantil, precisam receber denúncias, precisa ir atrás, verificar os casos, encaminhar para os setores do Ministério do Trabalho que devem promover fiscalizações, encaminhar os casos para para as promotorias de infância e juventude pra que tomem medidas de proteção a essas crianças e adolescentes e também pro próprio Ministério Público do Trabalho. 

Além das várias questões que eu citei, nós temos os acidentes também, que muitas vezes até matam crianças e adolescentes. Nós temos números do próprio Ministério da Saúde e que entre 2007 e 2019, tivemos 46 mil acidentes graves envolvendo crianças e adolescentes. Então, tivemos 270 mortes de crianças e adolescentes em situações de exploração do trabalho infantil e 6 mil que ficaram feridas, que se envolveram em situações de acidentes. 

Mais de 60% dos explorados são negros. Então, nós temos o racismo também quando tratamos do trabalho infantil no Brasil. Também a grande maioria abandona a escola, e acabam não tendo um desenvolvimento adequado. O trabalhador infantil de hoje vai ser o desempregado de amanhã porque ele não vai ter estudado vai ter se preparado pro mercado de trabalho que cada dia mais é exigente.

Como prevenir e denunciar a prática do trabalho infantil?

Quem coloca crianças e adolescentes em situações de risco deve responder criminalmente pelo crime de maus tratos. Além disso, o Ministério Público precisa entrar com ações civis de danos morais e materiais para que as empresas, essas pessoas, sejam devidamente responsabilizadas. As denúncias podem ser feitas tanto pelo Disque 100, que é gratuito, inclusive de forma anônima. 

As pessoas podem procurar também diretamente os conselhos tutelares, que estão em todos os municípios do país ou procurar também as antigas delegacias do trabalho, setores do Ministério do Trabalho que estão principalmente nas capitais brasileiras, através dos telefones, através dos e-mails ou diretamente nesses locais. ou o Ministério Público do Trabalho que também tem suas sedes nas principais cidades brasileiras, recebe denúncias, e vai estar aí exigindo fiscalização por parte dos auditores do Ministério do Trabalho para combater essa situação.

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