As mulheres negras têm liderado muitas estatísticas no Brasil, mas nenhuma delas é de fazer nossa sociedade se orgulhar. No mercado de trabalho, representam o desemprego, como 16,6%, na comparação com homens brancos, que estão na casa dos 8,3%, segundo levantamento feito pelo economista Cosmo Donato, da LCA consultores – com base na média dos últimos quatro trimestres da PNAD contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Por Karol Gomes, Do Hypeness
Da mesma forma, mulheres negras têm um rendimento médio real menor que a metade da renda do homem branco. Acima delas também estão os homens negros e em seguida as brancas. Se apenas a questão de oportunidades fosse um problema a ser resolvido pela vivência das mulheres negras, já seria uma pauta grande o suficiente. Mas quando olhamos para o Mapa da Violência, encontramos outros dados alarmantes: enquanto o feminicídio de mulheres negras experimentou um crescimento de 54,2% entre 2003 e 2013, no mesmo período, o homicídio de mulheres brancas caiu 9,8%.
Quando não precisa se defender, a mulher negra tem que defender os seus: também de acordo com o Mapa da Violência, dos cerca de 30 mil jovens entre 15 e 29 anos assassinados por ano no Brasil, 93% são homens e 77% são negros. Como diria a escritora Audre Lorde, “não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.
Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é difícil imaginar um movimento que não paute as questões das mulheres negras como urgentes ou que queira unificar a terminologia ‘mulher‘, sem considerar diversos recortes. O nome disso é interseccionalidade e ela é muito necessária ao feminismo.
Pensando nisso, o Hypeness reuniu depoimentos de mulheres negras sobre suas experiências pessoais com a data comemorativa e elas falaram também sobre o que esperam como um movimento coletivo. Confira:
“Quando falamos de ‘mulheres’, ainda vem uma imagem de um certo tipo de pessoa no subconsciente do coletivo”
“O dia 8 de março é uma data que deveria englobar todas as pautas de todas as mulheres. Mas a gente sabe que, infelizmente, não é assim que funciona. Quando falamos de ‘mulheres’, ainda vem uma imagem de um certo tipo de pessoa no subconsciente do coletivo, da sociedade, e essa mulher geralmente não é uma mulher negra. Uma vez que a gente ainda tenha que discutir sobre coisas básicas, como equidade salarial no mercado de trabalho, por exemplo, essa data tem sido bem utilizada para colocar luz em tais questões ainda não resolvidas. O 8 de março é também um momento de comemorarmos nossa existência, comemorar que estamos vivas, apesar do feminicídio e outras opressões que a gente vive. Mas sem deixar de lembrar que a gente ainda tem muita coisa para alcançar e que todo mundo faz parte da luta por esses direitos, principalmente para mulheres dentro de outros grupos considerados minorizados, que enfrentam problemas que mulheres brancas, hoje, não enfrentam.”
Joyce Prestes, estrategista de conteúdo no Google, pesquisadora de gênero e raça e co-fundadora da Monde Social
“O dia 8 de março ainda contempla um padrão cis gênero”
“O dia 8 de março ainda contempla um padrão cis gênero, até porque nós mulheres trans sofremos muito ainda com a deslegitimação do nosso ser e vejo que ainda tem muito a melhorar sobre a pluralidade do ser feminino. Ao longo do tempo fomos descobrindo novas formas de feminilidade e ressignificando muitas das regras às quais nos foram impostas enquanto mulheres no plural mas ainda vejo necessidades de pautar especificamente mulheres negras e mulheres trans. Está é uma data comemorativa que não tem me atravessado durante muito tempo. Por ser trans, vejo que o recorte é outro, há quem me parabenize no dia, mas, diariamente preciso provar a minha feminilidade para a sociedade. Então esse dia é mais um dentre muitos outros – ou ainda ousaria dizer que, al invés de flores, esse dia nos traz mais dor, por não contemplar os corpos e existências trans.”
Kiara Felippe, DJ e influenciadora digital
“A mulher preta tem um trajetória de vida muito diferente da mulher branca”
“Me sinto representada, mas não o suficiente enquanto mulher preta e lésbica. Isso porque, a partir do meu contato com o Feminismo Negro, comecei a enxergar que minhas pautas de raça não recebem o peso que deveriam, assim como as pautas de mulher lésbica e de mulher que nasceu na periferia. A mulher preta tem um trajetória de vida muito diferente da mulher branca, então quando nos unimos para lutar em prol de causas por nós, precisamos entender e validar essa pluralidade de existências. E o feminismo em sua raiz veio a partir de um olhar elitista e branco. As pautas das mulheres brancas não abrangem todas as pautas da mulher preta, da mulher periférica, da mulher trans, da mulher lésbica.”
Magalli Lima, redatora e estrategista de redes
“Minhas demandas ao mesmo completamente diferentes”
“Eu me sinto representada sim entre as mulheres, mas não por todas as mulheres. Muitas têm acesso à informação e ainda assim acabam por me tratar com desrespeito por eu ser uma pessoa trans. O 8 de março também é o meu dia pois sou mulher e luto diariamente dentro dos meus recortes, mas não sei se preciso me sentir inclusa no movimento como um todo. Muitas vezes é como se eu não fosse incluída naquele grito, naquela classe. Sou vista como algo diferente do que é considerado convencional e minhas demandas ao mesmo completamente diferentes.”
Lorena Lauritzen, DJ e influenciadora digital
“Existe um ponto de especificidade muito grande no ser mulher negra nesse Brasil”
“Mulheres negras são a antítese da antítese. No movimento de mulheres, não têm todas as suas pautas contempladas justamente por serem negras e no movimento negro, não têm todas as suas pautas. Existe um ponto de especificidade muito grande no ser mulher negra nesse Brasil que talvez somente o 8 de março não cubra. Mas também, ao pensarmos na data como um dia de celebrar a multiplicidade de existências como um ato político que rememora, nos encontramos: a data nasce do sofrimento de mulheres da classe trabalhadora, algo que caminha com a realidade das mulheres negras.”
Amarílis Costa, professora em direito da humanidade e outras legitimidades
“O 8 de março ganhou uma nova conotação em Salvador”
“Aqui na Bahia as movimentações do 8 de março eram muito influenciadas por partidos e sindicatos, com uma caminhada, normalmente organizada em todos os estados, mas muito institucional. Para se afastar desse formato engessado, mulheres começaram a se unir espontaneamente, negras, jovens, gordas, da classe trabalhadora e outros recortes, para liderarem sua própria manifestação. Em 2017 criamos o ato político, na praça da piedade em Salvador, e para nossa surpresa, o que seria apenas um ato político, se transformou em um grande movimento – isso virou a caminhada ‘Na Contramão da História’, em que descemos, literalmente na contramão, a ladeira do Elevador Lacerda. Desde então, o 8 de março ganhou uma nova conotação em Salvador, que está influenciando todo o estado da Bahia. Estamos ressignificando uma bandeira de luta e agregar diversas pautas, quando conseguimos dialogar, dentro do 8 de março, a vulnerabilidade das mulheres negras.”
Lindinalva de Paula, representante da Rede de Mulheres Negras do Estado da Bahia
“Em um país onde o feminicídio é uma pauta constante, é mais do que necessário pensar essa data como um dia político também”
“Ser uma travesti preta da periferia me coloca em várias caixas e infelizmente ainda existem muitas mulheres cisgeneras que são transfóbicas. Acredito que essas datas são importantes para pensarmos o que significa ser mulher e qual a importância de respeitarmos e ouvirmos todas as realidades plurais que envolva a construção de nossa mulheridade/travestilidade. Em um país onde o feminicídio é uma pauta constante, é mais do que necessário pensar essa data como um dia político também.”
Rosa Luz, rapper, artista performática, youtuber e produtora de conteúdo
Fotos das entrevistadas: Reprodução / Instagram