Dia Internacional de Erradicação da Pobreza: Mulheres negras, o contingente populacional mais pobre do Brasil

FONTEMigalhas, por Silvia Souza
Getty Images/iStockphoto

O dia 17 de outubro é marcado pela ONU como o Dia Internacional de Erradicação da Pobreza, a data foi criada em 1987, quando em Paris, mais de cem mil pessoas prestaram homenagem às vítimas da pobreza extrema, violência e da fome. Há mais de 30 anos, esse era um tema que assolava a humanidade e, atualmente, principalmente após a pandemia da Covid-19, volta a ordem do dia, tendo países como o Brasil retornando ao mapa da fome.

Seguida epistemologia internacional, a pobreza é um estado em que o nível de renda ou consumo per capita familiar ou domiciliar fica abaixo do mínimo essencial para suprir necessidades humanas básicas, manifestando, assim, por meio da fome, do acesso limitado – ou da total falta de acesso – à saúde, à educação entre outros serviços básicos, culminando na exclusão social, bem como à falta de participação na tomada de decisões1.

Segundo o Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (2021), com a  pandemia da Covid-19, a fome e a pobreza tiveram um aumento expressivo, levando pessoas vivendo na extrema pobreza de 8,4% em 2019 para 9,5% em 2020.

Por essas razões é que neste artigo, uma vez mais, voltarei minhas reflexões para o maior contingente populacional e o mais pobre desse país – as mulheres negras – a fim de indagar: Quais lugares as mulheres negras estão ocupando na sociedade atual?

É fato que existem algumas mulheres negras ocupando espaços importantes, tais como, na academia, no judiciário, em outras profissões que exigem formação em curso superior, na mídia etc. No entanto, esse é um número ínfimo perto da realidade da maioria das mulheres negras brasileiras, os índices sociais e econômicos que apontam para os lugares de subalternidade e precarização, desde a escravidão, revelam que a sociedade imbuída pelo racismo sistêmico e estrutural os reservou para nós, como ocupação prioritária.

Atualmente, a população brasileira beira aproximadamente 213 milhões2 de pessoas, tendo sua maior concentração no sudeste. As mulheres negras representam 27,8%3 dessa população, sendo um número bastante significativo ao representar pelo menos ¼ da população. No entanto, está longe de ser o número referente à representatividade de mulheres negras em cargos de poder e de tomada de decisão.

No que tange aos cargos eletivos, por exemplo,  em 2018, as mulheres negras  constituíram apenas 2,5% dos(as) deputados(as) federais e 4,8% dos(as) deputados(as) estaduais(as) eleitos(as),4 e, nas eleições municipais de 2020, apesar de serem mais de 81 mil candidatas, foram apenas 6,1% dos(as) vereadores(as) eleitas5. De acordo com os dados da ONG Mulheres Negras Decidem, apenas 8 milhões de brasileiros(as) ousaram depositar o seu voto em  mulheres negras e nas últimas eleições (2022), nove mulheres negras foram eleitas para o Congresso Nacional, num universo de 94 mulheres eleitas, representando 18% das cadeiras6.

O  antagonismo entre o maior contingente racial populacional e a sua pouca representação política  eleita pelo voto direto, aponta para o diagnóstico do quão vividos são entre nós, os paradigmas e estereótipos estabelecidos pelo mito da democracia racial em nossa sociedade, que acentua ainda mais as desigualdades sociais, a má distribuição das oportunidades sob a cortina de fumaça da meritocracia. A incredulidade, a desmoralização social, intelectual e estética, a constante suspeita do ilícito que recaem sobremaneira nos ombros da população negra estão impregnadas no (in)consciente da população brasileira. Uma vez que se reconhece que o racismo estrutural é multidimensional, assim como seus efeitos, é sabido que tais elementos se tornam determinantes para as escolhas da vida em todas as dimensões, inclusive na política.

Em contraste com os dados de representatividade das mulheres negras na política estão os dados da pobreza brasileira, neles verificamos  que as mulheres negras protagonizam o topo da exclusão, confirmando mais uma vez o chamado “Matriarcado da miséria” denunciado por Sueli Carneiro7 em sua coluna no jornal Correio brasiliense nos anos 2000. Neste trabalho, Sueli Carneiro reflete sobre a intersecção do racismo e do sexismo na vida das mulheres negras, produzindo sobre elas uma espécie de “asfixia social”, que reduz  suas vidas a uma expectativa de, em média, 5 anos a menos que as mulheres brancas.

Além disso, os dados da época revelaram que as mulheres negras se casavam menos e, em relação à ocupação profissional, 79,4% das negras estavam nos trabalhos manuais, e 51% no serviço doméstico, sendo a população feminina e negra, em tese, a mais miserável do Brasil.  Sueli Carneiro tomou emprestado o termo “matriarcado da miséria” cunhada pelo poeta negro e nordestino,  Arnaldo Xavier,  para marcar a experiência histórica das mulheres negras brasileiras numa sociedade excludente e discriminatória, que se de um lado as rejeitam, por outro lado impõe a elas o papel de resistência e liderança nas periferias e comunidades miseráveis8. 

Em 2021, o mundo foi atravessado pela segunda onda da Covid-19 (Sars-Cov-2). A letalidade violenta e a rápida transmissibilidade do coronavírus levou a maioria dos países do mundo a adotar medidas de fechamento,  isolamento social, entre outras, e um dos efeitos inevitáveis foi o agravamento da crise econômica em diversos países, como foi o caso do Brasil.

Naquele momento da história, tanto o Poder Executivo quanto a maioria no Poder Legislativo, transitavam entre a direita conservadora e a extrema direita, fazendo com que as crenças ideológicas alinhadas a esse espectro, fossem, portanto, as bases fundantes de políticas negacionistas adotadas para o enfrentamento do momento pandêmico. Isso implicou no crescimento da situação de pobreza e extrema pobreza no Brasil, escancarando ainda mais o racismo, o classismo e o neocolonialismo embutidos no direcionamento de tais políticas.  

Segundo o Made-Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades FEA-USP9, antes da pandemia, a taxa de pobreza atingia 33% das mulheres negras, 32% dos homens negros e 15% das mulheres brancas e dos homens brancos. Já em 2021, transcorrido quase um ano de crise econômica agravada pela pandemia, esses números passaram respectivamente para  38%, 36%, 19% e 19%.                Em relação à taxa de extrema pobreza10, antes da crise, era de 9,2% entre mulheres negras, 8,9% entre homens negros, 3,5% entre mulheres brancas e 3,4% entre homens brancos. Em 2021, a pobreza extrema continua em valores muito acima dos verificados antes da crise: respectivamente 12,3%, 11,6%, 5,6% e 5,5%.

De certo que a pandemia atingiu inúmeros grupos sociais, porém segundo os dados, as mulheres negras foram as mais prejudicadas, aprofundando ainda mais o fenômeno da feminização da pobreza e do chamado matriarcado da miséria.

Em relação aos rendimentos, a pesquisa realizada pelo IBGE11 aponta para disparidades gritantes. Apenas no recorte de gênero, verifica-se que em 2018, as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, já numa análise apenas de raça  os(as) negro(as) receberam somente 57,5% dos rendimentos dos brancos(as),

Porém, na intersecção de gênero e raça, a manutenção das mulheres negras na base da pirâmide em relação a todos os outros grupos (homem branco, homem negro e mulher branca) só reforçam o argumento de que para a sociedade brasileira os lugares destinados às mulheres negras é o do servilismo e da precarização. Atingidas frontalmente pelo racismo, pelo patriarcado e pela misoginia, acabam na base da pirâmide com uma diferença gritante, inclusive em relação à mulher branca.

A vantagem dos homens brancos sobre os demais grupos populacionais é patente e abissal, a pesquisa revela que as mulheres negras recebem apenas 44,4% dos rendimentos do homem branco.

E de acordo com a pesquisa, em relação às mulheres negras e brancas a diferença está na órbita de 58,6% a mais para as mulheres brancas. Os homens negros, por sua vez, só levam vantagem sobre nós, tendo rendimentos superiores aos nossos  na razão de 79,1% – a maior entre as combinações -, no entanto, ainda inferiores aos dos homens e mulheres brancas.

O mito da democracia racial, de uma sociedade harmônica, igualitária e democrática brasileira tem como uma de suas principais funções mascarar essas avassaladoras diferenças econômicas e sociais entre o grupo dominante  branco e os subalternizados: população negra, indígena, quilombolas, ribeirinhos e qualquer outra etnia menorizada.

Portanto, a reflexão para o dia de erradicação da pobreza é a necessária adoção de uma política antirracista que tenha o dispositivo “raça” –  aqui recorremos a noção de dispositivo de Foucault – como elemento central, juntamente com o gênero, para elaboração de políticas públicas específicas voltadas para as mulheres negras.

Nessa nova página da história, além do Ministério da Igualdade Racial, nunca havido antes, temos também o Ministério da Mulheres que tem a competência para formular, coordenar, articular e executar políticas para as mulheres e, portanto, jamais poderá se furtar de inserir o dispositivo raça de forma central em suas políticas.


1 Disponível aqui, acessado em 16.10.2023

2 Disponível aqui. Acessado em 20.11.2021;

3 Disponível aqui. Acessado 16.10.2023

4 IBGE: Pesquisa Desigualdade Social por ou ou raça no Brasil, 2019. Disponível aqui. Acessado em 20.11.2021

5 Disponível aqui. Acessado em 21.11.2021.

6 Disponível aqui.

7 CARNEIRO, Suelie; Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil – São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 127-130. – (Consciência em debate/ coordenadora: Vera Lúcia Benedito)

8 Idem 6.

9 Disponível aqui. Acessado em 21.11.2021.

10 O Ministério da Cidadania compreende como extrema pobreza a renda per capita mensal de até R$ 89,00 (oitenta e nove reais).

11 Idem 4.

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