Diante da tragédia, o movimento negro reage, em nome da maioria

FONTEDiplomatique, por Douglas Belchior
Douglas Belchior (Foto: Marlene Bargamo/Folhapress)

Quando, em 18 de outubro de 2018, ocupamos o Teatro Oficina em São Paulo, com mais de mil pessoas para o debate “No país da escravidão, de que fascismo falamos?”,1 o combinado foi o seguinte: “Temos de operar um milagre nesta semana e meia. Temos de derrotar Bolsonaro nas urnas. E depois, se tudo der certo e vencermos a eleição com Haddad, voltamos a nos encontrar para pensar o que virá, porque podemos até vencer nas urnas, mas o fascismo não voltará para o armário, teremos de lidar, conviver com ele. Temos de nos preparar para enfrentá-lo”.

Como sabemos, não rolou milagre. Perdemos nas urnas. Bolsonaro foi eleito. E, sim, tivemos de lidar com ele, com seu governo e com o fascismo que passou a brotar em todas as esquinas, feito erva daninha.

Levamos a sério a promessa daquela noite memorável e histórica para o movimento negro de São Paulo. Ali reunidas centenas de lideranças do movimento negro, dos movimentos de favelas e periferias, dos movimentos de cultura negra e periférica, éramos a prova real e concreta de nossa própria potencialidade. Diante do fascismo, que num país de herança escravocrata como o nosso detém traços de racialização da opressão, tínhamos, sim, uma tarefa maior. Precisávamos construir uma ação nacional e internacional por meio do Movimento Negro Brasileiro.

Depois da confirmação da vitória de Bolsonaro, a avaliação era óbvia: o povo brasileiro vai sofrer. E o povo negro será, conforme prometido e enunciado publicamente várias vezes pelo então candidato militar, alvo prioritário de sua violenta agenda.

E foi graças às forças políticas presentes ali no teatro, à provocação feita pela Uneafro Brasil, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), o Geledés, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) e a Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, e à imediata adesão de organizações nacionais do movimento negro, tais como Movimento Negro Unificado (MNU), Agentes de Pastoral Negros (APNs), Unegro, Renafro, entre outras regionais importantíssimas, que já em março de 2019, início do governo Bolsonaro, nos reunimos e fomos a Brasília reagir à tentativa de revogação de Lei de Cotas Raciais e apresentar outras demandas ao então presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

A sequência de ações construídas e promovidas coletivamente pelo Movimento Negro em 2019 seguiu. Em maio, fomos juntos à sessão oficial da CIDH-OEA, na Jamaica, denunciar o Estado e o governo brasileiro pela proposta de segurança pública liderada pelo então ministro da Justiça, Sérgio Moro. Em junho voltamos ao Senado e pautamos seu então presidente, Davi Alcolumbre, também sobre temas relacionados à segurança pública. Encampamos a luta pela proteção aos quilombolas da região da Base de Alcântara no Maranhão, quando fomos até Washington dialogar com parlamentares do Partido Democrata, obtendo apoio que repercute até hoje em ações para impedir a entrega da Base e a violação de direitos dos quilombolas daquela área. Promovemos ainda dois momentos importantes de mobilização e fortalecimento dessa aliança ao final de 2019: primeiro o encontro de lideranças do movimento negro brasileiro com a ativista Angela Davis, momento absolutamente memorável; em seguida, o encerramento do ano com um grande encontro internacional, onde formalizamos a Coalizão Negra por Diretos, composta até então por 150 organizações de todo o país, com programa político organizado em 14 princípios e 25 agendas fundamentais.

Iniciamos 2020 com fôlego total, mantendo denúncias internacionais na OEA e na ONU. Logo, porém, as ações passariam a sentir o impacto da pandemia de Covid-19, que a partir de março nos atingiu em cheio, já que somos organizações que, por sua própria natureza, existem por meio da base, dos territórios das periferias e favelas, onde nosso povo negro vive. Como resposta, promovemos ações fundamentais de apoio humanitário para matar a fome e cuidar da saúde de nossas comunidades. Lutamos pelo auxílio emergencial, vencendo a queda de braço com o governo Bolsonaro, que propôs R$ 200. Conquistamos o auxílio de R$ 600, que, depois rebaixado a R$ 300, durou até dezembro. Seguimos firmes no propósito de construção de uma democracia real, por meio do manifesto Enquanto Houver Racismo, Não Haverá Democracia 2 e, como muitos outros movimentos sociais, propusemos e pressionamos o Congresso pelo impeachment de Bolsonaro. Atravessamos 2020 em luta e entramos em 2021 sem descansar.

A irresponsabilidade do governo Bolsonaro na gestão da pandemia transformou o Brasil num cemitério continental, numa terra devastada por mais de 250 mil mortes e quase 30 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza extrema. A agenda prioritária, pela vida, pelo auxílio emergencial de R$ 600 até o fim da pandemia e por vacinas para todas e todos pelo SUS, nos levou a enfrentar as ruas, mesmo no contexto de aumento da gravidade do vírus. Pela vida do povo negro brasileiro, a Coalizão realizou a maior mobilização de pressão ao governo e ao Congresso, por auxílio e por vacinas,3 quando no último dia 18 de fevereiro foram realizados atos e manifestações presenciais em dezoito capitais e outras vinte cidades, além do protocolo de petições em Assembleias Legislativas de todos os 27 estados e diversas câmaras municipais. Antes, uma comitiva da Coalizão Negra já havia ido ao Congresso Nacional, Câmara e Senado, para dialogar e pressionar deputados e senadores, tendo inclusive agenda oficial com o presidente recém-eleito do Senado Federal, Rodrigo Pacheco.

Apesar da invisibilização deliberada e da pouca repercussão das ações do movimento negro brasileiro, é deste lugar que se vê uma importante mobilização e luta diária pela vida no contexto de barbárie que vivemos. Presenciamos uma tragédia que talvez só encontre precedentes no descalabro do genocídio negro e indígena. E, mais uma vez, esses são os povos que mais estão e continuarão sofrendo. Reafirmamos, enquanto organizações, entidades, grupos e coletivos do movimento negro brasileiro, o legado de resistência, luta, produção de saberes e de vida. Historicamente, seguimos enfrentando o racismo, que estrutura esta sociedade e produz desigualdades que atingem principalmente nossas existências. Durante os quase quatrocentos anos de escravização e desde o início da República, somos alvo de violações de direitos, do racismo antinegro, da discriminação racial, da violência e do genocídio. Mesmo assim, temos construído, com nossas trajetórias individuais e coletivas, a riqueza deste país.

 

Douglas Belchior é professor de História e coordenador de Articulação de Projetos do Fundo Brasil de Direitos Humanos. É fundador da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos.

 

1 Ver https://bit.ly/2PaH44N.

2 Ver https://comracismonaohademocracia.org.br.

3 Coalizão Negra por Direitos, “Carta aberta pela prorrogação do auxílio emergencial de 600 reais até o fim da pandemia e por vacina para todas e todos pelo SUS”, 18 fev. 2021.

 

 

 

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