O texto bíblico e a ciência convergem: no princípio era o verbo. No Gênesis, Deus cria o mundo, ordenando e nominando as coisas. A linguística define a linguagem passando pela própria definição dos seres humanos no mundo1. É via linguagem que transformamos a nós mesmas e a realidade em que vivemos, dando sentido a existência. Não qualquer existência, mas a de indivíduos reais, situados historicamente e atravessados por ideologias e vivências.
A experiência concreta da linguagem nos conecta à fascinante teoria dos Atos de Fala, formulada na década de 1960 pelo americano Jonh Austin. Mirando o uso cotidiano da língua, Austin percebeu e provou que o ato de falar é, sobretudo, um instrumento para realizar ações, ultrapassando a função narrativa-descritiva da realidade que os estudos lhe conferiam até então.
Falar é fazer
Austin constatou que todos os enunciados são performativos (do inglês “to perform”, que significa realizar), mesmo quando não há um verbo explícito. Num resumo, a fala cotidiana é um ato composto por três outros atos, realizados simultaneamente: 1. A ação de dizer, de proferir cada elemento linguístico de uma sentença (ato locucionário). 2. O ato que se realiza com a linguagem, que pode ser promessa, informação, ameaça, sugestão, etc (ato ilocucionário). 3. O ato provocado pela linguagem, o seu resultado, o que ela provoca: agrado, ameaça, medo, felicidade, etc (ato perlocucionário).
Um exemplo: quando uma candidata nestas eleições de 2020 afirma “quero ser prefeita para mudar a política” ela age ao escolher as palavras e pronunciá-las/escrevê-las, age ao mesmo tempo na linguagem (seu sentido), enquanto uma promessa, aviso e anúncio de projeto/desejo e, no mesmo ato, faz agir ao provocar algo em quem recebe a mensagem. Em mim, por exemplo, gera o sentimento de alegria política e a certeza de que nossos projetos fortalecem a luta por mais feministas nas política.
A tripartição da fala/ação também está na manchete do jornal, na sentença da juíza, no pronunciamento político, na explicação em sala de aula, na recomendação da mãe, na conversa no mercado, na prescrição médica. Sua efetivação está condicionada a muitas variáveis que ampliam ou reduzem seu potencial, mas o que nos interessa é redimensionar o olhar sobre a palavra, como transformação pessoal, social e política.
Estudar o discurso é apreender essa materialidade heterogênea da língua, em que cada palavra tem um antes, um durante e um depois, numa corrente ininterrupta e ativa entre quem enuncia e quem recebe a mensagem. Nunca neutra, constata Bakhtin. “Há tantas significações possíveis quanto contextos possíveis” 3.
o ato de falar é, sobretudo, um instrumento para realizar ações
Quando o discurso ultrapassa a comunicação interpessoal salta de esfera e se insere numa malha de disputas, com rituais próprios de concorrência, legitimação, reprodução e marginalização que refletem as desigualdades e injustiças estruturais na sociedade.
As condições econômicas, raciais e de gênero do bebê que nasce e chora a plenos pulmões em sua primeira grande expressão verbal estão associadas às barreiras de grande porte na sua trajetória de manifestações ao longo da vida.
No ambiente da casa, no trabalho, na rua, na escola, na imprensa, no parlamento, no judiciário, na igreja e no imaginário (reforçado e condicionado pelas regras de todos os outros espaços) mulheres, pessoas negras e com menor renda estão mais distantes da fala pública, da escuta atenta e do prestígio da influência e da reverberação do que dizem.
Poder simbólico do discurso
O poder linguístico emoldura a concentração das forças econômica, midiática, política e cultural. É o que Bourdieu chama de poder simbólico. Um poder quase mágico, oculto, capaz de “fazer ver e fazer crer”4, não pela palavra ou gramática em si, mas pelo reconhecimento de legitimidade conferido à pessoa que fala em relação às interlocutoras e interlocutores. A voz de autoridade é reconhecida como tal, reafirmando continuadamente a força simbólica da pessoa falante (e de seu grupo).
No que se refere às mulheres, por exemplo, mecanismos diversos as descredenciam à fala pública, não levam a sério sua narrativa e as distanciam dos espaços de poder. Hoje nominamos como violência política esse somatório de opressões que as afasta da política – a arena pública por excelência – mas sabemos que essas marcas estão profundamente incorporadas à cultura ocidental desde a era clássica. “São milhares de anos de prática”, resume a pesquisadora Mary Beard, que há 30 anos estuda a história de Roma.
A mudez feminina imposta milênios atrás simbolizou o esvaziamento geral do poder feminino que está sendo retomado. “É uma exclusão muita mais ativa e intensa das mulheres no discurso público e com um impacto muito maior do que reconhecemos em nossas próprias tradições […]. O discurso público e a oratória não eram apenas coisas que as mulheres não faziam: eram práticas e habilidades que definiam a masculinidade como gênero”5.
Um poder quase mágico, oculto, capaz de ‘fazer ver e fazer crer’, não pela gramática em si, mas pelo reconhecimento de legitimidade
A experiência pública marginalizada do feminino e especialmente das pessoas negras, escravizadas em capítulos brutais da história, resultaram em aprendizados culturais violentos e profundos que definem até hoje a vida das gerações silenciadas. A interdição do direito de contar a própria história é uma perversa forma de apagamento, um abuso de poder, que no caso é linguístico, mas opera no plano não visível, como uma camada vigorosa, porém sutil, de toda uma estrutura de esmagamento.
Não há acaso. A voz reconhecida como legítima atende a regras bem definidas: quem pode falar o que, onde, sobre que tema, com que tipo de destaque e aprovação. É o poder de “fazer ver e fazer crer” para contar a própria verdade com status de personificação da realidade em si.
Tanto que a posse do capital e de terras, moedas de dominação ainda válidas, foram ultrapassadas por formas contemporâneas e mais efetivas, relacionadas ao poder simbólico, que já mencionamos, pois o acesso preferencial a pessoas e grupos sobre o discurso público representa uma força muito mais avassaladora e onipresente que a soma de hectares. Dominar as narrativas sociais é também, ainda que indiretamente, controlar o que as pessoas querem e fazem, de forma a persuadir, seduzir e doutrinar, sem a necessidade de coerção6.
Nesse sentido, a própria noção de dominação (hegemonia) é fluida, invisível a olho nu, como numa orquestra sem maestro. É oculta, existe e se impõe perversamente, mas em pele de cordeiro, com a maquiagem do vento que sopra. Se fosse visível, como uma fumaça tóxica, jamais se instalaria nas casas, conduziria as relações sociais, a sala de aula, muito menos o horário nobre da TV. Seria um corpo estranho. A eficácia da dominação é não aparentar dominar, ação que se torna ainda mais sofisticada com todo o aparato imagético da modernidade.
É a ilusão da liberdade e da diversidade que torna a fórmula bem sucedida, fazendo as pessoas agirem, por seu próprio livre-arbítrio, no interesse de quem está no poder6. Tudo através da linguagem (verbal e não verbal). É a influência ignorada como arbitrária que gera um resultado semelhante ao obtido pela força.
E o círculo é vicioso e ambicioso. Quanto mais controle sobre as formas públicas de comunicar e discursar, mais base de poder para influenciar atos e mentes de outros grupos, normalmente com pouco ou nenhum acesso a narrativas alternativas, estas que são sistematicamente freadas e desacreditadas. Não sem luta, não sem disputa, mas sempre em desequilíbrio de condições.
Enfrentar o abuso de poder linguístico
A essas opressões extralinguísticas se somam desafios internos a serem superados, como o medo do desprezo, da censura, do julgamento. O silêncio não protege, reflete, contundente, a poetisa Audre Lorde. Revisando o passado – “do que mais me arrependi foi de meus silêncios”7 – ela ressignifica o não-dito e convoca a transformar o silêncio em linguagem e em ação.
Uma receita de autonomia semeada no íntimo da necessidade em incontáveis falas/escritas, muitas delas ‘descobertas’ tardiamente pelo mundo, como os exemplos de Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, Cora Coralina. E em iniciativas várias de emancipação a partir da reconstituição oral, como na magnífica obra da bielorrussa vencedora do nobel de literatura, Svetlana Aleksiévich. Acessando pela oralidade a vida comum nos grandes eventos da História, ela media a libertação pela fala. “Muitas vezes reparo em como elas estão escutando a si mesmas, o som de sua alma. Conferindo-o com suas palavras”8.
Enfrentemos os abusos linguísticos, ponta de lança de outras opressões. Há mais perguntas que respostas, mas um dos caminhos é pensar profundamente sobre a nossa comunicação social. Buscar uma linguagem que seja singular (pois fala de nós mesmas) mas toque o universal e ecoe em maior escala. O poder precisa de vozes dissonantes.
A nova (outra?) construção narrativa redimensiona a força do dizer de todos os dias, com importância extra em tempos eleitorais. O reduzido tempo de campanha praticamente anula o real debate público sobre os temas fundamentais e mais uma vez favorece as narrativas circulantes há mais tempo. Vamos, então, ampliar a disputa e nunca deixar o lugar vazio.
Se queremos mais mulheres feministas, pessoas negras e projetos antissistêmicos nestes espaços, pensar minuciosamente o componente discursivo é essencial. A palavra, o tom, o espaço comunicativo, como vimos, modifica tudo. Um projeto político consistente que possa ‘fazer ver e fazer crer’ é basilar (é preciso ter o que dizer para pensar em como dizer), tanto quanto a atuação em rede, que amplia e fortalece as potência narrativas.
A comunicação pública, como espaço de informação mais plural e menos capitalista, é agenda prioritária, tal qual a valorização da mídia independente como poderosa força narrativa não hegemônica. Por fim, um fim que é começo, é preciso dar-se a escuta de vozes comuns e diversas nas conversas, debates, mesas e rodas presenciais ou virtuais.
A fala com audiência franqueada às mesmas pessoas, sempre, é também uma reprodução da lógica controladora do poder. Circular as falas, com generosidade, é um ato político. Se concordamos que falar é fazer, diversificar os espaços discursivos e as pessoas em discurso é fazer muito mais, e com maior potencial de transformação.
Referências:
2- Austin, Jonh Langshow. Quando fazer é dizer. Tradução Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre, Artes Médicas 1990. http://www.professores.uff.br/ricardobasbaum/wp-content/uploads/sites/164/2019/09/Intro_Austin_Quando_dizer_e_fazer.pdf
3-BAKHTIN, Mikail; VOLOCHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
4- BOURDEIRU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 2000.
5- BEARD, Mary. Mulheres e Poder: um manifesto. Tradução de Celina Portocarrero. São Paulo. Planeta Brasil, 2018.
6- Dijk, Teun A Van. Discruso e Poder. São Paulo. Contexto. 2017
7- LORDE, Audre. A transformação do silêncio em ação. Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/
8- ALEKSIÉVITCH, S. A guerra não tem rosto de mulher. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016