Dissimular e ferir: verbos conjugados pela branquitude no cotidiano racista.

FONTEPor Josi Souza¹, enviado ao Portal Geledés
Josi Souza (Foto: Arquivo Pessoal)

  

Sabe aquele pedido de desculpa ou aquela expressão facial de levantar as sobrancelhas com um risinho cínico de quem se mostra surpreso, ambos forçados? Então. São especialidades dos sujeitos sobre os quais as insígnias da branquitude incidem. Geralmente ocorrem quando são frustrados em suas certezas ancoradas no racismo, cujas representações sobre o povo negro minimizam, apagam e silenciam nossas formas de existir e ocupar espaços sociais valorizados. 

As representações e a forma como operam sobre a comunidade negra integram a análise de intelectuais como bell hooks e Lélia Gonzalez². Os rótulos preconcebidos para determinar lugares sociais, características de personalidade e do caráter com fins de desqualificar, animalizar, rebaixar nossa humanidade, seja como indivíduos ou enquanto grupo social, aparecem tão naturalizados na sociedade que a dissimulação se tornou o recurso principal daqueles que cometem os ditos equívocos despretensiosos de intenção racista, o que não se sustenta diante da recorrência com que tais equívocos ocorrem com pessoas negras. Assim nos foram impostos atributos depreciativos de caráter (“cara de bandido”), de emoções (“raivosa”, “arrogante”), de sexualidade (“lascivos”, “bons de cama”) entre outras imagens naturalizadas numa sociedade que nega a existência do racismo mas não consegue construir relações que não estejam estruturadas em hierarquia e subjugo raciais.

Esta branquitude, que não reflete sobre si tampouco se racializa, sonega o passado de expropriação do trabalho, violência física e psicológica, estupros, invasões, exploração voraz dos recursos naturais e tantas outras barbaridades praticadas para que seus herdeiros sintam-se muito à vontade para “errar” – reiterada vezes- e ainda nos exigirem que os ensinemos, com paciência pedagógica, a não serem racistas.

Vejam o caso da bailarina clássica Ingrid Silva, brasileira “confundida” como faxineira nos EUA quando apenas passeava no parque com sua família. Ter sido nos EUA é só um detalhe, uma vez negros da diáspora enfrentam tais situações cotidianamente em qualquer espaço onde nossos antepassados foram tratados como bens semoventes. Além de racismo, xenofobia, uma vez que pelo olhar do homem que a abordou a cor da pele e o idioma estrangeiro os levou a presumir sua relação com uma atividade manual e do servir. A resposta dada pela bailarina o deixou… surpreso (sobrancelhas levantadas e risinho cínico).

Confundir pessoas negras como as que exercem funções de baixa valorização e remuneração é tão violento quanto a costumaz “falha” que leva agentes da segurança pública a executar jovens das comunidades com a desculpa de que confundira o guarda-chuva com um fuzil. Enquanto esta última produz como resultado morte física todas as outras “confusões” nos matam simbolicamente ao nos relegar, sempre e invariavelmente, a tudo o que acham que ficou para negros e esse tudo é aquele quase nada.

É o combinado. Ou melhor, é o pacto de autopreservação a fim de assegurar o que postulam como normal e universal, como nos ensina a obra O Pacto da Branquitude. Ameaçamos os que se pretendem universais quando contrariamos as expectativas em relação a quem somos socialmente, intelectualmente, economicamente e é este sentimento de ameaça um dos componentes essenciais do preconceito, “da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele”, referenciando Cida Bento (p 18). 

Ainda pensando esse lugar da branquitude, o olhar sobre os seus é completamente diferente deste de suspeição generalizante ao permitir que seja aplicado o benefício da dúvida. Dessa forma, uma estudante de medicina que usurpou quantia vultosa, que seria destinada à festa de formatura da turma, é tratada nas manchetes como possível vítima de um golpe e não como a golpista, além de uma “convidada” a prestar esclarecimentos às autoridades policiais, aonde chegará e sairá pela porta da frente, sem algemas, com seus advogados para dali responder livremente pelo crime cometido.

A branquitude se entende, se protege, se defende em seu acordo tácito de manutenção do poder. Este mecanismo vem sendo investigado, desvelado tanto em ambiente acadêmico como também pela militância negra. Falta destruí-lo em sua engrenagem, uma tarefa coletiva, política e inadiável porque pró vidas negras, que precisam ser salvas da bala perdida (que sempre nos encontra) e da dissimulação racista no cotidiano, também mortal.


¹  Historiadora, Professora da Educação Básica ( SEC-BA), Mestra em Educação (PPGE-UEFS), militante feminista antirracista, coletivo Pretagonistas.

²  Na obra Olhares negros: raça e representação, bell hooks reuniu ensaios críticos que denunciam e questionam os padrões e representações de imagens. Lélia Gonzalez escreveu vários artigos em que tenciona a branquitude em relação às mulheres negras nos papeis de mulata, mãe preta e empregada doméstica. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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