Ditadura militar e branquitude: o poder estampado no filme Marighella

FONTEPor Igor carvalho, enviado ao Portal Geledés
Filme Marighella/ Divulgação

“Eu assisto um filme e sei o poder que está por trás dele.” 

  Haile Gerima¹

A partir das palavras do cineasta etíope Haile Gerima, escrevo esse texto usando do meu corpo e da formação política que o movimento negro tem me oportunizado para tentar desnudar, aqui, o poder que vi por trás do filme Marighella

Sim, é sobre poder.

Tem muito poder traduzido e estampado no filme dirigido por Wagner Moura e que tem provocado tamanha comoção nacional. E para expor esse poder, me permito me retirar e ao mesmo tempo me manter no filme, indicando ao longo do percurso como o racismo, traduzido na desumanização de corpos negros – e portanto na impossibilidade de enxergar dor nesses corpos – é a principal lupa necessária para essa leitura que faço do filme.

Para começo de história, é prudente recordar que no Brasil, corpos negros foram escravizados durante 400 anos. Mas no filme tal cenário de dor parece ter sido endereçado para um não lugar. A obra de Moura, a dor negra foi colocada de tal forma que não toca, não cheira, não emociona e não se faz sentir – reflexo de que, quando se mobiliza a dor e a tortura no Brasil, todos os caminhos apontam como um cálculo despretensioso para os 25 anos de ditadura militar. Nessa perspectiva, é preciso observar que só com muito poder é possível fazer com que 25 anos de ditadura estanquem 400 anos de escravidão: é um movimento leviano (e por vezes até obsceno) associar a dor e a tortura à repressão militar de 64 no contexto brasileiro, onde o grande laboratório de tortura foi, de fato, a escravidão.

Nessa conjuntura brasileira, penso em como a dor e a tortura de corpos brancos no contexto da ditadura militar comove, registra e emociona, e como essa emoção também se traduz em demandas práticas: filmes, documentários e indenização estatal às vítimas da ditadura. Na mesma toada de dor, mas em sentindo oposto, a escravidão de corpos negros, a dor dessse corpos, continua sem emocionar e sem se traduzir em ações estatais de responsabilização. O Estado brasileiro e suas instituições, que tinham na escravidão a sua principal fonte de renda, não se sentem responsáveis pelos corpos negros escravizados. Com relação a documentários, filmes e outros registros audiviosuais sobre a escravidão, isso parece ser sempre papo para outra hora. O filme Marighella revela mais uma postergação da pauta negra: agora é sobre a ditadura, sobre Marighella – até porque nós brasileiros, inclusive os negros, precisamos dar conta de Bolsonaro. 

É necessário nomear o poder por trás e pela frente do filme Marighella, porque tratá-lo somente como poder, em termos abstratos, acaba por não revelá-lo mas sim reforça-lo em alguma medida. Quando falo em poder aqui, estou falando da branquitude, especificamente a progressista, que também pode ser chamada de esquerda branca. São corpos brancos. 

Sem dúvidas a Ditadura Militar é um signo da branquitude: é o signo de uma dor que se faz sentir e gera até indenizações estatais que foram pagas a componentes de grupos de esquerda que enfrentaram o período ditatorial. O Estado brasileiro se responsabiliza pela dor branca, mas por que o mesmo Estado, que tem suas instituições fundadas com o dinheiro da escravidão, não se sente responsável em indenizar as famílias dos negros escravizados? Nesse sentido, Edson Cardoso² diz que a indenização é possível no contexto da Ditadura Militar porque ocorre entre iguais, entre aqueles que se consideram humanos.

Nomeada a branquitude e demarcada a ditadura militar enquanto um de seus signos, sigo em frente na tentativa de desnudar o poder que se revela no filme Marighella. Nesse sentido, uma fala de Wagner Moura no Programa Roda Viva, ao ser provocado por um dos entrevistadores sobre uma suposta tentativa de empretecer Marighella, é bastante sugestiva: o diretor afirma que quando Mano Brown não pode fazer o papel de Marighella, sua principal preocupação era a de que seria necessário outro ator negro para interpretar o papel. Disse Wagner Moura: “eu só pensava que precisava de outro ator preto”.

A fala de Moura diante da ideia de que ele empreteceu Marighella com a escolha de Seu Jorge para o papel principal aponta caminhos importantes. Num primeiro momento, vale questionar se é possível empretecer em alguma medida uma história que carrega o signo da branquitude em todos os seus contornos e bordados. Será que Marighella tem o poder de empretecer a Ditadura Militar? Um personagem pardo isolado entre brancos, uma história branca interpretada por um corpo preto, um corpo preto interlocutor de uma dor branca? É possível um corpo preto ser um interlocutor de uma dor branca, é possível empretecer a Ditadura Militar? Acho difícil, afinal, é o corpo branco que consegue fazer ecoar a dor, emocionar, indenizar a dor.

Mas então por que essa necessidade de Marighella ser interpretado por um corpo negro? Por que seria interessante para o poder, para a esquerda branca, trazer Marighella em um corpo preto? Caridade com os corpos negros? Não. A resistência preta e os interesses políticos da branquitude progressista fazem com que a branquitude tenha que dialogar com os corpos negros – mas ainda nos termos e na narrativa da própria branquitude. Na verdade, não se trata de diálogo, afinal poder não se exerce nesses termos. É sobre dizer como, de que forma, vamos resistir.

Assim, nos termos do poder, a branquitude age de forma estratégica e perversa como de costume: coloca um corpo preto numa narrativa que é branca, num evento histórico que carrega toda a simbologia da branquitude, numa tentativa acrobática de democracia racial nos termos da branquitude, utilizando-se de uma tática pouco inovadora, um patriotismo ufanista traduzido na cena em que corpos brancos cantam efusivamente o hino nacional. E mais do que isso, propaga uma suposta união entre brancos e negros – refletida nos codinomes Branco e Preto usados por Marighella e por Almir, seu companheiro de luta. A união contra o inimigo comum se traduz em pedir aos militantes negros que descansem suas pautas apátridas porque ainda hoje temos um inimigo que dividimos: Bolsonaro.

No contexto político em que estamos vivendo seria necessário colocar para descansar as reinvindicações do movimento negro por um suposto bem maior, uma suposta redemocratização do país que mais uma vez vai se dar nos termos e nas narrativas da branquitude. Ainda não chegou a vez dos corpos negros. É isso que o filme Marighella disse para o meu corpo.

 Não posso deixar de mencionar a cena quase missionária em que o personagem de Bruno Gagliasso, o policial Lúcio, executa dois corpos negros numa linha de trem e nomeia esses corpos de pretos. Na tentativa de “dialogar” com a pautas do movimento negro, a cena fica fora de lugar, sem aparente conexão com a narrativa central do filme a não ser, talvez, apresentar o vilão da história e comover algumas pessoas.

Lúcio é um vilão que traduz poder de forma peculiar.  É de uma masculinidade branca que parece não existir na vida cotidiana, um homem branco pitoresco, perverso, quase caricato. A construção do vilão da narrativa retira a possibilidade de que a perversidade do homem branco esteja presente nas sutilezas do homem branco progressista/esquerdo-macho que articula poder com o filme Marighella. Desse modo, poder e branquitude se confundem e continuam a impor contornos no projeto político que a esquerda branca tem para o país. 

Para corpos como o meu, o filme Marighella transborda poder, o poder de uma branquitude progressista que tem um projeto político claro para o Brasil, uma suposta redemocratização nos seus termos, a partir de sua histórias e de suas epistemologias.  Nessa narrativa branca, cabe um corpo preto ali ou aqui para dar o tom de democracia racial, mas a história e o poder, as mãos que seguram as canetas e os corpos que tomam as decisões – ainda que mesmo no campo supostamente progressista – vão permanecer brancos. 

A impressão que fica é a de que o corpo negro chegou atrasado nesse projeto, fora do tempo e da história, e a dor negra vai ter que esperar mais uma vez.  


³ Haile Gerima é um cineasta etíope radicado nos Estados Unidos desde da década de 60 e foi um dos principais membros do movimento cinematográfico L.A. REBELLION, também denominado de “Los Angeles School of Black Filmmakers”. O cineasta bordou uma estética independente de cinema negro no cenário norte-americano, sendo a sua principal obra o filme “Sankofa”(1993), onde o cineasta etíope detém-se sobre a resistência de africanos escravizados. 

² Edson Cardoso é jornalista e militante histórico do Movimento Negro. No tocante as suas inúmeras contribuições para a resistência negra destaca-se a edição do Jornal Irohin (“notícia”, em Yorubá), importante veículo informativo para as epistemologias negras, além do protagonismo em diversas movimentações políticas do Movimento Negro. 

Autor: formado na UFBA, Igor Carvalho é um homem negro, advogado e pesquisador do campo Direito e Relações Raciais.

Bibliografia:

ALÉM DO ESPELHO. Direção: Ana Flauzina.2017

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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