Diversidade além das cotas

Tatiana Lima

Cotas- Conta Nelson Rodrigues em “O Óbvio Ululante” (Companhia das Letras) que, em 1960, o filósofo francês Jean-Paul Sartre estranhou o público de uma conferência no Brasil: “E os negros? Onde estão os negros?”. Após quase 40 anos, em 1998, um executivo negro do BankBoston fez as mesmas perguntas numa filial brasileira. Em resposta, ouviu que eles não trabalhavam ali, porque não tinham as qualificações necessárias —nem sequer concorriam às vagas abertas.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Projeto Geração XXI
Bruna Aparecida da Silva Oliveira, aluna da USP que passou por cursinho comunitário

Esse foi o estopim para a criação do projeto Geração XXI, uma das diversas iniciativas de ação afirmativa que, de alguns anos para cá, vêm se espalhando pelo país, com o objetivo de fornecer meios para que jovens negros ou pobres consigam vagas em universidades e condições de assumir posições de destaque na sociedade. São ações dos mais diferentes tipos, desde cursinhos pré-vestibulares comunitários até universidade com foco na questão racial, passando pelas polêmicas cotas e por pontuação extra em vestibulares.

Idealizado pela Fundação BankBoston e administrado pelo Instituto Geledés, o Geração XXI começou no início de 1999, quando 21 estudantes negros de idade entre 13 e 15 anos passaram a estudar em escolas particulares e a receber acompanhamento pedagógico, vale-alimentação de meio salário mínimo, vale-refeição, bolsa mensal e assistência médica e odontológica. Ainda hoje os estudantes continuam assistidos pelo programa —apenas um não entrou na universidade.

Gustavo Martins da Silva, 20, aluno de tecnologia e mídias digitais na PUC-SP, diz que, se não fosse o programa, provavelmente, estaria fazendo um curso técnico e trabalhando. “Sempre tive vontade de fazer faculdade, mas era algo distante. O projeto foi um caminho mais rápido para alcançar esse desejo”, afirma ele, filho de um soldador aposentado e de uma empregada doméstica.

Richele Manuel, 19, cursa jornalismo na Universidade São Marcos. Ela aponta outro mérito do projeto: muitas mães de beneficiados voltaram a estudar. “As oportunidades de ascensão social foram acontecendo.” Seu pai é professor de geografia, e sua mãe, enfermeira.

Mas há iniciativas um pouco mais radicais. A Faculdade Zumbi dos Palmares, concebida pela ONG Afrobras, destina 50% das vagas a negros e é centrada na discussão da questão racial. José Vicente, presidente da entidade e reitor da faculdade, diz que faltava uma instituição em que os negros fossem protagonistas. A faculdade, em que quase dois terços (65%) dos 200 alunos são negros, começou suas atividades neste ano, por enquanto apenas com o curso de administração de empresas. “A escolha desse curso pretende criar lideranças empresariais negras ou que tenham em mente a questão racial”, diz Vicente.

A quantidade de negros na Zumbi é exceção entre as universidade brasileiras. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) de 2002, pretos e pardos correspondem a cerca de 45% da população. Os dados do questionário socioeconômico do Exame Nacional de Cursos (Provão), porém, mostram que eram pretos ou pardos 24% dos estudantes dos 26 cursos analisados em 2003.

Uma das estratégias para amenizar essa desigualdade tem sido os cursos pré-vestibulares comunitários. Um dos mais antigos é mantido pela ONG Educafro. Ele começou em 1993, por iniciativa da Pastoral do Negro da Igreja Católica, e tem hoje 250 núcleos, cada um com cerca de 50 alunos (pobres, mas não necessariamente negros), dez professores e seis coordenadores. O cursinho também tem parceria com universidades particulares, como a PUC-RJ, que concedem bolsas aos aprovados.

Bruna Aparecida da Silva Oliveira, 19, freqüentou um cursinho comunitário mantido pela FIA (Fundação Instituto de Administração), em São Paulo. Atualmente, faz geociências e educação ambiental na USP. Também passou em engenharia agrícola na Unicamp e agronomia na Unesp. Ela é a primeira pessoa de sua família a ingressar na faculdade —seu pai é motorista desempregado, e sua mãe, empregada doméstica. “Quando tive a chance de me preparar para o vestibular, a agarrei com unhas e dentes.”

Karime Xavier/Folha Imagem
Gustavo Martins da Silva, que recebe assistência do Geração XXI e estuda na PUC-SP

Mesmo com exemplos bem-sucedidos, os cursinhos comunitários são insuficientes para garantir o acesso de negros e pobres à universidade. David dos Santos, coordenador da Educafro, usa a própria instituição para justificar: nunca conseguiu aprovar um de seus alunos em um curso de medicina numa universidade pública paulista. Sem cotas, acredita ele, o ensino superior permanecerá excludente.

As cotas, todavia, ainda são controversas. Mesmo quem defende ações afirmativas, como Derek Bok, 74, ex-reitor e ex-diretor da Faculdade de Direito de Harvard e co-autor do livro “O Curso do Rio” (Garamond), em que analisa políticas para acesso à universidade, vê com ressalva esse programa. Para ele, esse mecanismo tende a causar ressentimento e pode resultar na aprovação de alunos mal qualificados. Se isso acontecer, segundo Bok, ou esses alunos abandonarão os cursos ou a faculdade diminuirá o padrão de ensino para que eles se graduem.

Vice-reitora de graduação da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que adotou o sistema de cotas em 2003), Raquel Villardi contesta Bok e não vê sentido num programa no Brasil com base na experiência americana. “Nos Estados Unidos, 80% dos alunos entram na universidade. No Rio, apenas 5% dos que terminam o ensino médio entram em um curso superior público. Ou seja, lá o aluno que não entrou teve oportunidades e não conseguiu. Aqui, era um aluno com boa qualificação, mas que ficou de fora por falta de vagas”, diz Raquel.

As universidades estaduais paulistas não adotaram cotas, mas há três projetos na Assembléia Legislativa. Seus autores (os deputados Tiãozinho, Vicente Cândido e Cândido Vacarezza, todos do PT) tentam uni-los e pôr em votação neste ano. O novo projeto destinaria 50% das vagas a alunos de escolas públicas (30% para negros de escolas públicas).

A Unicamp antecipou-se e instituiu um mecanismo que, segundo o coordenador-executivo do vestibular, Leandro Tessler, é mais justo. A partir do próximo exame, 30 pontos extras serão dados a alunos vindos de escolas públicas. Os que também forem negros ganham outros 10 pontos. “As cotas violam o princípio do mérito. Nosso projeto, não. Os pontos só serão dados na nota final e só farão diferença aos que já tiveram um bom desempenho”, diz Tessler. Segundo a comissão de vestibulares da universidade, os alunos fazem em média 550 pontos.

Mensurar os resultados de todos esses programas ainda não é possível. Para a pró-reitora de graduação da USP, Sônia Teresinha Sousa Penin, ações afirmativas são parte, mas não toda a solução do problema. “O mais importante é dar a todos as mesmas oportunidades. Para isso é preciso melhorar a escola pública, da pré-escola ao ensino médio.”

Segundo o relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2004, nos países em que essas políticas têm sido eficazmente executadas, as desigualdades entre grupos diminuíram. Mas as desigualdades entre pessoas se mantiveram estáveis ou aumentaram: nos EUA, ações afirmativas fizeram crescer a elite negra, mas não equilibrou os índices econômicos e de desenvolvimento dessa população em relação aos dos brancos. O relatório mostra ainda que ações inicialmente temporárias tornaram-se depois permanentes. Na Índia, a intenção era pôr fim a essas políticas assim que os grupos beneficiados melhorassem suas condições. Mas elas se tornaram autoperpetuadoras.

Por fim, resta a questão mais difícil: manter nas universidades os alunos beneficiados. Isso demanda políticas como concessão de bolsas e fornecimento de material didático e computadores. Na Uerj, por exemplo, cotistas tendem a abandonar a universidade por falta de dinheiro, apesar da boa condição acadêmica. “Não dar condições para permanência é mais cruel do que não dar acesso”, afirma Raquel Villardi.

 

Fonte: Folha

-+=
Sair da versão mobile