O DNA das populações da África, continente que é considerado o berço da humanidade, acaba de ser mapeado com um nível de detalhamento sem precedentes. Liderados por uma pesquisadora da África do Sul, cientistas analisaram o genoma (conjunto do material genético) de 426 pessoas, pertencentes a 50 etnias diferentes espalhadas por quase todo o continente.
Entre os resultados do esforço estão a descoberta de 3 milhões de variantes genéticas até então desconhecidas, dados sobre como a seleção natural moldou a variabilidade genética da África atual e pistas sobre a expansão dos bantos, grupo de povos pré-históricos que conquistou boa parte do continente e cujas línguas são faladas por cerca de 30% dos africanos de hoje.
A pesquisa coordenada por Zané Lombard, da Universidade do Witwatersrand, em Johannesburgo, é um marco porque a revolução genômica ainda explorou relativamente pouco a tremenda diversidade do DNA africano.
Com efeito, a maior parte da variabilidade genética humana está presente nas populações da África. Isso acontece porque os seres humanos modernos surgiram inicialmente lá e evoluíram por dezenas de milhares de anos em seu berço africano antes de colonizar os demais continentes, o que significa que houve mais tempo para as populações africanas acumularem variantes em seu DNA. Além disso, foi só um subgrupo relativamente pequeno dos povos africanos originais que se aventurou para fora da região, o que significa que seus descendentes carregam uma parte menor da diversidade originária.
Apesar disso, a maior parte das pesquisas genômicas feitas até hoje analisou principalmente o DNA de pessoas de origem europeia e, em menor grau, asiática. Quando há dados sobre populações africanas, é comum que eles venham majoritariamente de grupos da Nigéria, como os iorubás (que deixaram muitos descendentes na Bahia e outros locais do Brasil, sendo trazidos para cá pelo tráfico de escravizados).
Isso parecia fazer sentido, em parte, por causa da grande diversidade linguística da Nigéria (que frequentemente tem correlação com diversidade genética). Mas os novos dados, publicados na revista científica Nature, mostram que não se pode tomar o DNA dos nigerianos como uma amostra representativa da África como um todo.
Na pesquisa, os cientistas obtiveram a sequência de todas as “letras” químicas do DNA dos voluntários (3 bilhões de pares de letras para cada indivíduo) e, a partir daí, mapearam principalmente os chamados SNPs (pronuncia-se “snips”). A sigla inglesa significa “polimorfismos de nucleotídeo único” e corresponde ao menor tipo possível de variação genética: a troca de uma única letra química por outra no genoma.
Os SNPs são muito usados como pistas para estudar a associação entre certas alterações genéticas e o risco aumentado de desenvolver algumas doenças (ou de ficar mais protegido contra certos problemas de saúde). Também ajudam a mapear o parentesco entre diferentes populações humanas, seja por sua presença, seja por sua frequência. E havia relativamente pouca informação sobre os SNPs típicos de diferentes povos africanos, o que reforça a importância da pesquisa.
Entre as variantes identificadas estão SNPs em genes importantes para o funcionamento do sistema de defesa do organismo e para a resistência a doenças causadas por vírus, bactérias e pelos parasitas da malária e da chamada doença do sono (transmitidos por mosquitos e pela mosca-tsé-tsé, respectivamente).
Em casos como esses, os pesquisadores identificaram a assinatura da seleção natural em ação —ou seja, tudo indica que tais variantes foram se tornando cada vez mais comuns em diferentes populações africanas ao longo do tempo porque permitiam que seus portadores sobrevivessem a tais doenças por tempo suficiente para se reproduzir e passar tais genes adiante. É possível inferir isso com a ajuda de uma série de técnicas, como a que detecta grandes blocos de letras químicas intactos em torno do SNP em muitas pessoas —se não houvesse a seleção natural, que fez as pessoas com a mutação se reproduzirem com mais frequência do que as demais, esses blocos seriam “quebrados” ao longo das gerações.
Tais casos de genes favorecidos pela seleção natural também ajudam a contar a história populacional da África. Em Uganda, por exemplo, onde a malária é endêmica, as populações de origem banto possuem alta frequência de um gene ligado à resistência à doença (da ordem de 20%), enquanto seus vizinhos de outras etnias não carregam esse gene. É bastante provável, diz a pesquisa, que isso aconteça porque os povos bantos sempre conviveram com a doença de forma muito próxima, enquanto outras etnias de Uganda migraram de regiões próximas do Saara há relativamente pouco tempo, onde a malária não era um grande problema.
Quanto à expansão dos bantos, provavelmente vindos da região na fronteira entre Camarões e a Nigéria, os arqueólogos propõem que os falantes desses idiomas desenvolveram técnicas agrícolas, de fabricação de cerâmica e de metalurgia que lhes permitiu conquistar e/ou absorver outros povos africanos a partir de 3.500 anos atrás. O novo estudo sugere que esses grupos fizeram um “pit stop” na atual Zâmbia (centro-sul da África) antes de espalhar seus descendentes pela África do Sul e pela África Oriental.
Referência: https://www.nature.com/articles/s41586-020-2859-7