Do social ao religioso, Jair de Odé constrói projetos socioeducativos na Cidade Tiradentes

FONTEReportagem Amanda Porto edição Kátia Mello
Arquivo Pessoal

A reportagem abaixo faz parte da série Geledés- Retratos da Pandemia, que traz histórias de como os moradores das periferias estão enfrentando a batalha contra a covid-19. São relatos que capturam a humanização do cuidado, a solidariedade e a organização nas comunidades em prol dos mais afetados pela doença infecciosa.

Com o portão aberto, é fácil avistar as mesas posicionadas à frente de três caixas de isopor que carregam cerca de 840 litros de leite. O insumo é para o abastecimento de cerca de 420 famílias, uma prática que ocorre todas as segundas e quintas-feiras. A reportagem de Geledés encontra Pai Jair em frente ao Ilê Axé Omo Odé, sede não só de toques do Candomblé, mas também lugar em que as pessoas da Cidade Tiradentes recebem alimentação, cursos profissionalizantes, conhecimento sobre direitos humanos, raça e gênero.

Seu terreiro está no distrito paulistano Cidade Tiradentes, onde se encontra o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com cerca de 40 mil unidades, a maioria construída na década de 1980 pela COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) e pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), abrigando mais de 220 mil moradores. O Ilê, que significa casa em ioruba, poderia ser somente um local de refúgio espiritual, cuidado e afeto, mas segundo Pai Jair “chega uma hora que não dá só pra dar oração se as pessoas têm fome e precisam conhecer seus direitos”, diz.

Nascido Jair Cardoso, em 1953, Pai Jair ou Jair de Odé é presidente da ONG Ilê Axé Omo Odé, localizada na Cidade Tiradentes, onde luta pelos direitos da população do extremo da Zona Leste de São Paulo, descolonizando o olhar e as relações das pessoas com terreiros de candomblé.

Em 1976 Pai Jair teve sua vida transformada, quando foi iniciado em Óde.  O começo de sua trajetória com os projetos socioculturais dentro do Ilê foi marcado pela busca de uma melhor qualidade de vida para os moradores da região. Filho de Oxóssi, orixá da caça, das florestas, da fartura e do sustento, Pai Jair sempre se preocupou com a alimentação dos seus. Em uma época em que não havia asfalto na região e as casas ainda eram embriões, e quando em hospital nem se falava, ele foi à procura de políticas públicas para o terreiro e sua comunidade.

Começou a fazer parte de alguns conselhos participativos que pensavam em saúde e moradia para a região. Ele lembra que o hospital mais próximo era em Itaquera, e muitos doentes morriam no caminho, porque não havia transporte adequado nem tempo hábil para se chegar lá. Os conselhos dos quais fazia parte contavam com outros dois líderes religiosos que faziam o mesmo trabalho, o pastor Alexandre da Igreja Betel e frei Robson da Ação Nossa Senhora da Graça. Juntos, os três se uniram em prol de ações efetivas para as melhorias de Tiradentes. Uma das maiores conquistas do grupo foi a chegada do Hospital Santa Marcelina, e das cinco Unidades Básicas de Saúde na região.

O trabalho social e a saúde dentro do terreiro 

Hoje, prover alimentação e profissionalização aos moradores da Cidade de Tiradentes está entre as vertentes de atuação de Pai Jair e da ONG Ilê Axé Omo Odé. A distribuição dos litros de leite se iniciou nos anos 1990, através de uma política de segurança alimentar estabelecida pelo governo estadual de São Paulo da época. Jair conta a Geledés que as doações eram feitas somente para mães com bebês de seis meses a seis anos, em um programa que atendia cerca de 50 famílias. Mas com as adaptações e as mudanças de governo, foi implementado o leite para o idoso, ampliando o atendimento, e agora são cerca de 840 litros de leite doados a 420 famílias às segundas e quintas-feiras em frente ao Ilê, onde Jair entrega o insumo pessoalmente a cada pessoa que o procura, usando máscaras e cumprindo com as regras de distanciamento.

Além da distribuição do leite, o Ilê conta com o programa de Bancos de Alimentos da prefeitura de São Paulo, que faz doação de alimentos mensalmente às entidades assistenciais, previamente cadastradas. Uma vez por mês, Pai Jair reserva um dia para separar os alimentos que vêm em sacos de 5 kg para que todas as famílias possam se manter minimamente por um mês.

Há cinco anos, com apoio do Fundo Social do Governo de São Paulo, o Ilê Axé Omo Odé tornou-se sede de cursos profissionalizantes gratuitos para a população. Os cursos são: bioconstrução que visa explorar as técnicas ecológicas de construção; moda que tem como objetivo dar efetivas oportunidades à população de baixa renda por meio do ensino de técnicas de costura, confecção, beleza, estética e bem-estar, cabeleireiro e manicure, todos dentro da visão de inclusão e autonomia social como parte das estratégias de enfrentamento da pobreza nestas comunidades.

Com o objetivo de trazer novas perspectivas de vida para as pessoas periféricas da Cidade Tiradentes, Pai Jair divide o Ilê em diversas áreas, tudo acontece ali mesmo, os cursos têm duração de dois meses e são gratuitos. No térreo da casa, ficam as máquinas de costura, no terreiro, onde também acontecem os toques de candomblé fora do horário de aula, as paredes abrigam espelhos e bancadas para cabeleireiros. O sonho de separar o trabalho social do ritual religioso se torna cada vez mais realidade, tendo em vista que a maior parte dos alunos dos cursos é formada por evangélicos.

O atual governo estadual modificou as estratégias do Fundo Social, congelando o dinheiro nas contas das associações, e assim, desde 2019 o Ilê se viu obrigado a interromper suas atividades, depois de cinco anos contínuos de execução do projeto e de transformação de realidades. Pai Jair sente o pesar: “Quantas pessoas tiramos do crime, famílias sem renda que puderam empreender através do curso”, reflete.

SUS no Terreiro 

Quando o HIV/AIDS chegou ao Brasil, havia pouca ou nenhuma informação não apenas para o Pai Jair como para a população em geral. O preconceito contra quem adquiria a doença levou a ser chamada de “peste gay”. No candomblé, o assunto veio com força devido à cerimônia com objeto cortante que acontece uma vez por ano, na Sexta-feira Santa. Todos os filhos do Ilê deveriam ser cortados com a mesma navalha, e então se um deles fosse soropositivo, logo toda a casa também seria. Em comum acordo e em prol da saúde de todos, foi necessário modificar a cerimônia, e a partir de então, cada filho leva sua própria navalha. Com o assunto sobre HIV/AIDS em alta no Brasil, a dúvida sobre como conscientizar os filhos dos Ilês surgiu, e então o Pai Celso de Oxalá que trabalha na Secretaria da Saúde, iniciou o projeto que trouxe  temática da saúde para dentro dos terreiros.  Foi feita uma comunicação do projeto com medidas de prevenção das doenças aos filhos do Ilê. Os banners chegaram a sair das paredes do Ilê para fazerem parte na avenida de desfiles no Carnaval. “Esse é o nosso povo, que se cuida”, diz Pai Jair.

Os alertas sobre a saúde surtem efeitos até hoje. O projeto Sambando com Saúde, iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), na Cidade Tiradentes, conta com rodas de conversa, oferta de Teste Rápido para Diagnóstico de DSTs, orientações, distribuição de preservativos e ainda um stand do Ilê Axé Omo Odé que desmistifica o uso das ervas, banhos e chás, fazendo o resgate das histórias das benzedeiras e da medicina ancestral.

O local também já abrigou o projeto “Educar Para Mudar” alfabetização do EJA, com noções  de sustentabilidade  e auto estima. Em parceria com Geledés, o Ilê Axé Omo Ode ainda realizou oficinas para tratar de violência doméstica, direitos humanos, pedofilia, saúde e prevenção de DST/AIDS.

De porta em porta: conscientização sobre a covid-19  

A falta dos abraços mexe com o emocional de Pai Jair. Aos 67 anos, como integrante do grupo de risco, ele sentiu o medo de morrer e assim, viajou para o interio do Estado de São Paulo no início da pandemia no ano passado. Como muitos brasileiros, imaginou que o isolamento seria por apenas um mês, e passou a resolver tudo em relação às doações por telefone, principalmente o cadastramento das famílias. Como ainda não havia previsão de vacina ou de melhoras do quadro da covid, em maio passado, ele voltou para a Cidade Tiradentes, mesmo receando ser contaminado. “Tá no sangue da gente não dá pra fazer diferente”.

Para retirar as cestas básicas, o Ilê conta com uma equipe que trabalha com luvas e aventais que faz a distribuição dos alimentos, enquanto que as burocracias ficam por conta de Pai Jair que as resolve por telefone.

Além da entrega das cestas e dos litros de leites, Pai Jair, durante a pandemia, realizou oficinas de costura para algumas formandas do curso de moda. Elas aprenderam confeccionar máscaras sem custo, seguindo as normas da OMS. Foi uma maneira de incentivar a proteção e também de oferecer renda às pessoas impactadas pela chegada da pandemia e do desemprego. Foi com essa iniciativa que surgiu o projeto Heróis Usam Máscara, sendo essas costureiras as primeiras a serem contratadas.

No projeto, financiado pelos bancos Bradesco, Itaú e Santander e com realização do Centro Paula Souza, foi instalado um contêiner, seguindo todas as normas da OMS, para que as costureiras pudessem fazer tranquilamente suas máscaras.

A distribuição gratuita das máscaras ficou por conta de Pai Jair, que uma vez por semana descarregava caixas pelas comunidades, distribuindo de porta em porta não só as máscaras, mas também palavras de apoio e esperança. “No terreiro é muito afeto, beija mão, beija testa, abraça, nosso contato é muito próximo, é acolhimento, e a falta disso tudo somada ao desemprego resulta muitas vezes em depressão”, diz.

Mesmo se expondo nas ruas, ele manteve seu trabalho entre os meses de maio a julho de 2020, período que chegou a entregar 65 mil máscaras, segundo ele.  “Eu precisava fazer isso, porque a coisa mais difícil é conscientizar a periferia a usar máscara tendo em vista o desserviço do governo e as informações desencontradas sobre a covid-19, ao ser considerada ‘uma gripezinha”’, afirma.

O trabalho do Pai Jair segue nestes tempos em que a fome aumenta, com o fim do auxílio emergencial. Para a retirada do leite, é obrigatório o uso de máscara. Se proteger e proteger o outro é a lema do Ilê durante a pandemia, e mesmo cansado dessa situação, Pai Jair não arrefece. Cita o provérbio africano que diz: “não importa quão longa seja a noite, o dia virá certamente”.

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