Dona Analia – uma curadora contra a repressão do Estado Novo

FONTEPor Luana Vanessa Costa Soares, enviado para o Portal Geledés

O que uma curadora negra atuante na cidade de Salvador, Bahia, da década de 1940 nos ajuda a entender o alcance da repressão institucional em contextos de suspensão das garantias do Estado democrático de direito? Neste artigo, recorro à experiência de Dona Analia para abordar as violências cometidas durante o Estado Novo.

O Estado Novo foi um regime político ditatorial instaurado durante a Presidência de Getúlio Vargas entre os anos de 1937 e 1945. A partir de um golpe de Estado, Getúlio impôs uma nova Constituição ao país e, por meio dessa, “cercou-se de poderes excepcionais. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os partidos políticos extintos. O comunismo transformou-se no inimigo público número um do regime, e a repressão policial instalou-se por toda parte” – destaca Dulce Pandoff na coletânea Repensando o Estado Novo. Tais ações foram realizadas com o intuito de eliminar as chances de oposição ao governo. O autoritarismo foi, portanto, uma característica deste regime expresso numa escalada repressiva e na tentativa de construção de uma forte e unificada identidade nacional, alinhada a padrões de desenvolvimento específicos.

Para a construção dessa identidade nacional, foi promovida uma série de ações no sentido de gerar uma centralização federal das gestões estaduais. Na Bahia, esta nova configuração das relações de poder se efetivou com as nomeações de Juracy Magalhães e Landulfo Alves como interventores federais, indicados por Vargas, para conduzir os destinos do poder Executivo estadual. 

Landulfo Alves (ao centro) visitando Afonso Pena, município baiano. Fonte: Biblioteca Consuelo Pondé – Acervo do Centro de Memória da Bahia.

Mas esse tipo de expediente não se limitou à gestão das instituições públicas. A imposição de costumes também afetou manifestações culturais apontadas como não condizentes com o padrão de desenvolvimento desejado pelas elites brasileiras e os gestores do Estado. Esse processo de transformação exigiu a construção de narrativas cujo objetivo era sustentar uma distinção entre as práticas culturais das elites econômicas e políticas – ambicionadas como marca da modernização –, e as práticas culturais populares – entendidas como expressão do atraso e, portanto, indesejadas.

Entre essas práticas culturais condenadas pela elite brasileira nesse contexto, destacavam-se aquelas relacionadas a um vasto repertório popular de cura. Como argumenta a historiadora Vilma Maria do Nascimento, tratava-se de práticas na área da saúde e do cuidado orientadas a partir “de saberes construídos fora da universidade”, ou seja, a partir do cotidiano de grupos pertencentes às classes populares. A desqualificação e a criminalização desses costumes foram evocadas durante o período do Estado Novo tanto para minimização da importância dos saberes de cura populares quanto para aplicar as legislações sanitárias e penais. Um dos exemplos mais emblemáticos das disputas nesse campo foi o recrudescimento do Código Penal (Decreto Lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940), por meio do qual se enquadraram inúmeros curadores populares na categoria geral de “charlatanismo” e, ao mesmo tempo, se promoveu o aumento da pena daqueles que continuassem a exercer qualquer tipo de prática terapêutica que não estivesse legitimada pela classe médica.

Pelo novo código, a pena para quem exercia “curandeirismo” aumentou de seis meses a um ano para seis meses a dois anos, cabendo afora isso pagamento de multa. Além da ampliação do tempo de prisão, o crime de “curandeirismo” também foi qualificado. A partir de então, o uso de gestos, palavras e a emissão de diagnósticos tornaram-se crimes contra a saúde pública. Cabe aqui lembrar que tal medida ampliou o alcance da punição contra práticas de utilização cotidiana entre a população, como os benzimentos, as rezas e os remédios fitoterápicos que não fossem produzidos por farmácias ou boticárias, entre outros recursos da medicina popular.

Entre esses curadores, encontravam-se pessoas como Dona Analia, mulher negra, curadora e moradora da Fazenda Garcia, um bairro de Salvador, que, segundo reportagem do Diário de Notícias, realizava curas e as atribuía ao auxílio dos seus guias espirituais.

Dona Analia, ao centro, em entrevista “ao repórter”. Diário de Notícias, 29 de abril de 1940. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IGHB).

O Diário de Notícias contou a história da curadora para a cidade. Entre março e abril de 1940, o periódico dedicou-se a expor os relatos dos consulentes que buscavam o periódico para testemunhar as curas recebidas e defender as práticas realizadas por Dona Analia. As ações de repressão estão presentes em toda a história narrada. Nesse cenário, um fato marcante foi a decisão da polícia de montar guarda na casa da curadora impedindo o acesso de novos consulentes ao seu interior. O alegado rebuliço causado pelas curas de Dona Analia a levou a se tornar vítima de um inquérito policial realizado pela Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). Na cobertura do caso, outro elemento de relevo é a forma pejorativa com que o periódico trata o caso.

Em suas entrevistas para o periódico, Dona Analia mostrava ter consciência sobre as relações de tensão entre as suas curas e o aparato institucional e jurídico de combate a práticas populares de cura. No diálogo dela com o repórter responsável por acompanhar o seu caso, reproduzido no Diário de Notícias, de 7 de março de 1940, ela relata: “As minhas curas, eu sei, estão causando profundo rebuliço. Tenho de dar satisfação à polícia pelas minhas atividades, e estou disposta para tanto, a operar dentro da própria delegacia, para que todos vejam”. 

O processo repressivo que se instalou sobre a curadora reflete as mudanças que o Estado Novo desejou impor para a população brasileira, em especial para as classes populares e para a população negra. Tais ações acenavam para um desejo de moralizar as relações sociais e de saúde no país, entretanto, ao interditar práticas tradicionais de cura e os saberes utilizadas por estes segmentos populacionais, foram responsáveis por reforçar a discriminação como costume. 

Assista ao vídeo da historiadora Luana Vanessa Costa Soares no Cultne.TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI02 (9º ano: Caracterizar e compreender os ciclos da história republicana, identificando particularidades da história local e regional até 1954); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS104 (Analisar objetos da cultura material e imaterial como suporte de conhecimentos, valores, crenças e práticas que singularizam diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço).


Luana Vanessa Costa SoaresMestranda em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb); E-mail: luanasoaresc3@gmail.com; Instagram: @luanasoareshist

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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